quarta-feira, 30 de abril de 2008

A borboleta

A borboleta queria uma noiva e, naturalmente, pretendia a mais bonita das florzinhas. Olhou para cada uma delas. Estavam silenciosas e muito discretas no seu caule, conforme convém a jovens donzelas casadoiras. Mas, como eram muitas, era muito difícil escolher.
Então a borboleta voou para junto da menina malmequer. Os franceses descobriram que esta flor possui o dom da profecia. Os namorados arrancam-lhe as pétalas uma a uma, fazendo perguntas sobre o parceiro: «Gosta de mim?», «Pouco?», «Muito?», «Nada?». Cada pessoa faz as perguntas na sua própria língua. A borboleta também a interrogou, mas em vez de lhe arrancar as pétalas, beijou-as uma a uma, pois acreditava que a gentileza dá melhores resultados:
- Doce malmequer! És a mulher mais inteligente de todas as flores. Diz-me, devo escolher esta ou aquela flor? Qual delas devo escolher para noiva? Assim que me responderes, voarei na sua direcção e pedi-la-ei em casamento.
Mas a menina malmequer não disse uma palavra. Ficou aborrecida porque lhe tinham chamado «mulher», sendo ela solteira e, ainda por cima, muito jovem. A borboleta fez a pergunta uma e outra vez mas, como não obteve resposta, acabou por desistir e voou para longe disposta a encontrar uma noiva sem a ajuda de ninguém.
Estava-se no começo da Primavera; as campainhas brancas e os açafrões floresciam por todo o lado.
- São muito bonitas, – disse a borboleta – mas muito jovens.
Preferia meninas mais velhas, como acontece com a maioria dos rapazes mais novos. Voou para junto das anémonas, mas achou-as um pouco secas demais. As violetas eram demasiado românticas e as túlipas demasiado alegres. Os lírios eram muito plebeus, as flores de tília eram muito pequenas e, além disso, tinham muitas irmãs. É certo que as flores de macieira pareciam rosas, mas floresciam num dia e caíam no seguinte, levadas pelo vento. Seria um casamento demasiado breve.
A flor que mais lhe agradou foi a da ervilha de cheiro. Era vermelha e branca, fina e delicada; pertencia à categoria das raparigas caseiras que são bonitas e, ao mesmo tempo, sabem cozinhar. Ia pedi-la em casamento quando viu a seu lado uma vagem de ervilha com uma flor murcha na ponta.
- Quem é esta? – perguntou.
- É minha irmã – respondeu a ervilha de cheiro.
- Oh! É nisso que te transformarás!
Assustada com a ideia, a borboleta voou para longe.
A madressilva florescia pelas encostas. Havia muitas, com faces redondas e pele amarela. Não gostou da espécie. Sim, mas afinal de contas, de quem é que ela gostava?
Boa pergunta!
A Primavera passou e o Verão também. Chegou o Outono e a borboleta estava longe de se decidir. As flores estavam agora mais bonitas, usando roupagens coloridas, mas de que lhes serviam? Faltava-lhes a frescura e o aroma da juventude e é precisamente por essa fragância que o coração anseia quando se envelhece. As dálias não possuem qualquer aroma em particular e, por isso, a borboleta foi ver a hortelã.
- Na verdade não tem flores, mas toda ela é uma flor, perfumada dos pés à cabeça, com um doce aroma em cada folha. Sim, é ela que desejo.
E, finalmente a borboleta pediu-a em casamento.
Porém, a hortelã ficou rígida e calada. Por fim, respondeu:
- Seremos amigos, se quiseres, mas nada mais. Sou velha e tu também o és. Podemos viver um para o outro, mas casar, não. Não façamos figura de tolos na nossa idade.
E foi assim que a borboleta ficou solteira. Tinha hesitado demais, o que não é sensato. A borboleta «ficou para tia», como se costuma dizer.
O Outono ia já avançado e o vento frio vergava os troncos trémulos dos pobres salgueiros, fazendo-os estalar. Quando o tempo está assim, não é nada agradável voar em traje de passeio. Mas a borboleta não voava pelos campos. Por mero acaso tinha entrado numa sala que tinha a lareira acesa. O ar estava tão quente que parecia Verão. Por isso, conseguiu manter-se viva.
- Manter-me viva apenas, não chega – pensava a borboleta. – Faz-me falta o brilho do Sol, a liberdade e uma florzinha para amar.
Então voou contra o vidro da janela. As pessoas viram-na, admiraram-na, espetaram-lhe uma agulha e juntaram-na à colecção de borboletas. Foi tudo o que puderam fazer por ela.
- Agora estou assente num caule, tal como as flores – disse a borboleta. – Não é muito agradável. É tal e qual como o casamento: está-se firmemente agarrado.
A borboleta consolava-se com este pensamento.
- Pobre consolo o dela! – Murmuraram as flores dos vasos da sala.
- Não me posso fiar na opinião das flores dos vasos – pensou a borboleta. – Convivem demasiado com os seres humanos.
Hans Christian Andersen

terça-feira, 29 de abril de 2008

O BOI CARDIL

Um rei tinha um criado, em quem depositava a maior confiança, porque era o homem que nunca em sua vida tinha dito uma mentira. Recebeu o rei um presente de boi muito formoso, a que chamavam o boi Cardil; o rei tinha-o em tanta estimação que o mandou para uma das suas tapadas acompanhado do criado fiei para tratar dele. Teve uma ocasião uma conversa com um fidalgo, e falou da grande confiança que tinha na fidelidade do seu criado. O fidalgo riu-se:
– Porque te ris? – perguntou o rei.
– É porque ele é como os outros todos, que enganam os amos.
– Este não!
– Pois eu aposto a minha cabeça como ele é capaz de mentir até ao rei.
Ficou apostado. Foi o fidalgo para casa, mas não sabia como fazer cair o criado na esparrela e andava muito triste. Uma filha nova e muito formosa, quando soube a causa da aflição do pai, disse:
– Descanse, meu pai, que eu hei-de fazer com que ele há-de mentir por força ao rei.
O pai deu licença. Ela vestiu-se de veludo carmesim, mangas e saia curta, toda decotada, e cabelos pelos ombros e foi passear para a tapada; até que se encontrou com o rapaz que guardava o boi Cardil. Ela começou logo:
– Há muito tempo que trago uma paixão, e nunca te pude dizer nada.
O rapaz ficou atrapalhado e não queria acreditar naquilo, mas ela tais coisas disse e jeitinhos deu que ele ficou pelo beiço. Quando o rapaz já estava rendido, ela exigiu-lhe que, em paga do seu amor, matasse o boi Cardil. Ele assim fez e deu-se por bem pago todo o santíssimo dia.
A filha do fidalgo foi-se embora, e contou ao pai como o rapaz tinha matado o boi Cardil; o fidalgo foi contá-lo ao rei, fiado em que o rapaz havia de explicar a morte do boi com alguma mentira. O rei ficou furioso quando soube que o criado lhe tinha matado o boi Cardil, em que punha tanta estimação. Mandou chamar o criado.
Veio o criado, e o rei fingiu que nada sabia; perguntou-lhe
– Então como vai o boi?
O criado julgou ver ali o fim da sua vida e disse:
Senhor! pernas alvas
E corpo gentil,
Matar me fizeram
Nosso boi Cardil.
O rei mandou que se explicasse melhor; o moço contou tudo. O rei ficou satisfeito por ganhar a aposta, e disse para o fidalgo:
– Não te mando cortar a cabeça como tinhas apostado, porque te basta a desonra de tua filha. E a ele não o castigo porque a sua fidelidade é maior do que o meu desgosto.

Teófilo Braga,Contos Tradicionais do Povo Português(1883)

segunda-feira, 28 de abril de 2008

OS TRÊS CONSELHOS

Um pobre rapaz tinha casado, e para arranjar a sua vida, logo ao fim do primeiro ano teve de ir servir uns patrões muito longe. Ele era assim bom homem, e pediu ao amo que lhe fosse guardando na mão o dinheiro das soldadas. Ao fim de uns quatro anos já tinha um par de moedas, que lhe chegava para comprar um eidico, e quis voltar para casa. O patrão disse-lhe:
– Qual queres, três bons conselhos que te hão-de servir para toda a vida, ou o teu dinheiro?
– Ele, o dinheiro é sangue, como diz o outro.
– Mas podem roubar-to pelo caminho e matarem-te.
– Pois então venham de lá os conselhos.
Disse-lhe o patrão:
– O primeiro conselho que te dou é que nunca te metas por atalho, podendo andar pela estrada real.
– Cá me fica para meu governo.
– O segundo, é que nunca pernoites em casa de homem velho casado com mulher nova. Agora o terceiro vem a ser: nunca te decidas pelas primeiras aparências.
O rapaz guardou na memória os três conselhos, que representavam todas as suas soldadas; e quando se ia embora, a dona da casa deu-lhe um bolo para o caminho, se tivesse fome; mas que era melhor comê-lo em casa com a mulher, quando lá chegasse. Partiu o homenzinho do Senhor, e encontrou-se na estrada com uns almocreves que levavam uns machos com fazendas; foram-se acompanhando e contando a sua vida, e chegando lá a um ponto da estrada, disse um almocreve que cortava ali por uns atalhos, porque poupava meia hora de caminho. O rapaz foi batendo pela estrada real, e quando ia chegando a um povoado, viu vir o almocreve todo esbaforido sem os machos; tinham-no roubado e espancado na quelha. Disse o moço:
– Já me valeu o primeiro conselho.
Seguiu o seu caminho, e chegou já de noite a uma venda, onde foi beber uma pinga, e onde tencionava pernoitar; mas quando viu o taverneiro já homem entrado, e a mulher ainda frescalhuda, pagou e foi andando sempre, Quando chegou à vila, ia lá um reboliço; era que a Justiça andava em busca de um assassino que tinha fugido com a mulher do taverneiro que fora morto naquela noite. Disse o rapaz lá consigo:
– Bem empregado dinheiro o que me levou o patrão por este conselho.
E picou o passo, para ainda naquele dia chegar a casa. E lá chegou; quando se ia aproximando da porta, viu dentro de casa um homem, sentado ao lume com a sua mulher! A sua primeira ideia foi ir matar logo ali a ambos. Lembrou-se do conselho, e curtiu consigo a sua dor, e entrou muito fresco pela porta dentro. A mulher veio abraçá-lo, e disse:
– Aqui está meu irmão, que chegou hoje mesmo do Brasil. Que dia! E tu também ao fim de quatro anos!
Abraçaram-se todos muito contentes, e quando foi a ceia para a mesa, o marido vai a partir o bolo, e aparece-lhe dentro todo o dinheiro das suas soldadas. E por isso diz o outro, ainda há quem faça bem.

Teófilo Braga, Contos Tradicionais do Povo Português, 1883

quarta-feira, 23 de abril de 2008

O Gato das Botas

Um moleiro, que tinha três filhos, repartindo à hora da morte seus únicos bens, deu ao primogénito o moinho; ao segundo, o seu burro; e ao mais moço apenas um gato. Este último ficou muito descontente com a parte que lhe coube da herança, mas o gato disse-lhe:
— Meu querido amo, compra-me um par de botas e um saco e,em breve, te provarei que sou de mais utilidade que um moinho ou um asno.
Assim sendo, o rapaz converteu todo o dinheiro que possuía num lindo par de botas e num saco para o seu gatinho. Este calçou as botas e, pondo o saco às costas, encaminhou-se para um sítio onde havia uma coelheira. Quando ali chegou, abriu o saco, meteu-lhe uma porção de farelo miúdo e deitou-se no chão fingindo-se morto. Excitado pelo cheiro do farelo, o coelho saiu de seu esconderijo e dirigiu-se para o saco. O gato apanhou-o logo e levou-o ao rei, dizendo-lhe:
— Senhor, o nobre marquês de Carabás mandou que lhe entregasse este coelho. Guisado com cebolinhas será um prato delicioso.
— Coelho?! — exclamou o rei. — Que bom! Gosto muito de coelho, mas o meu cozinheiro não consegue nunca apanhar nenhum. Dize ao teu amo que eu lhe mando os meus mais sinceros agradecimentos.
No dia seguinte, o gatinho apanhou duas perdizes e levou-as ao rei como presente do marquês de Carabás. O rei ficou tão contente que mandou logo preparar a sua carruagem e, acompanhado pela princesa, sua filha, dirigiu-se para a casa do nobre súbdito que lhe tinha enviado tão preciosas lembranças. O gato foi logo ter com o amo:
— Vem já comigo, que te vou indicar um lugar, no rio, onde poderás tomar um bom banho. O gato conduziu-o a um ponto por onde devia passar a carruagem real, disse-lhe que se despisse, que escondesse a roupa debaixo de uma pedra e se lançasse à água. Acabava o moço de desaparecer no rio quando chegaram o rei e a princesa.
— Socorro! Socorro! — gritou o bichano.
— Que aconteceu? — perguntou o rei.
— Os ladrões roubaram a roupa do nobre marquês de Carabás!— disse o gato. — Meu amo está dentro da água e sentirá cãibras se de lá não sair.
O rei mandou imediatamente uns servos ao palácio; voltaram daí a pouco com um magnífico vestuário feito para o próprio rei, quando jovem. O dono do gato vestiu-o e ficou tão bonito que a princesa, assim que o viu, dele se enamorou. O rei também ficou encantado e murmurou:
— Eu era exatamente assim, nos meus tempos de moço.
O gato estava radiante com o êxito do seu plano; e, correndo à frente da carruagem, chegou a uns campos e disse aos lavradores:
— O rei está chegando; se não lhes disserem que todos estes campos pertencem ao marquês de Carabás, faço-os triturar como carne para almôndegas.
De forma que, quando o rei perguntou de quem eram aquelas searas, os lavradores responderam-lhe:
— Do muito nobre marquês de Carabás.
— Com a breca! — disse o rei ao filho mais novo do moleiro. — Que lindas propriedades tens tu!
O moço sorriu perturbado, e o rei murmurou ao ouvido da filha:
— Eu também era assim, nos meus tempos de moço.Mais adiante, o gato encontrou uns camponeses ceifando trigo e fez-lhes a mesma ameaça:
— Se não disserem que todo este trigo pertence ao marquêsde Carabás, faço picadinho de vocês. Assim, quando chegou a carruagem real e o rei perguntou de quem era todo aquele trigo, responderam:
— Do mui nobre marquês de Carabás. O rei ficou muito entusiasmado e disse ao moço:
— Ó marquês! Tens muitas propriedades!
O gato continuava a correr à frente da carruagem; atravessando um espesso bosque, chegou à porta de um magnífico palácio, no qual vivia um ogre que era o verdadeiro dono dos campos semeados. O gatinho bateu à porta e disse ao ogre que a abriu:
— Meu querido ogre, tenho ouvido por aí umas histórias a teu respeito. Diz-me lá: é certo que te podes transformar no que quiseres?
— Certíssimo — respondeu o ogre e transformou-se num leão.
— Isso não vale nada — disse o gatinho. - Qualquer um pode inchar e aparecer maior do que realmente é. Toda a arte está em se tornar menor. Poderias, por exemplo, transformar-te em rato?
— É fácil — respondeu o ogre, e transformou-se num rato.
O gatinho deitou-lhe logo as unhas, comeu-o e desceu logo a abrir a porta, pois naquele momento chegava a carruagem real. E disse:
— Bem-vindo seja, senhor, ao palácio do marquês de Carabás.
— Olá! — disse o rei — que formoso palácio tens tu! Peço-te a fineza de ajudar a princesa a descer da carruagem. O rapaz, timidamente, ofereceu o braço à princesa e o rei murmurou-lhe ao ouvido:
— Eu também era assim tímido, nos meus tempos de moço. Entretanto, o gatinho meteu-se na cozinha e mandou preparar um esplêndido almoço, pondo na mesa os melhores vinhos que havia na adega; e quando o rei, a princesa e o amo entraram na sala de jantar e se sentaram à mesa, tudo estava pronto. Depois do magnífico almoço, o rei voltou-se para o rapaz e disse-lhe:
— Jovem, és tão tímido como eu era nos meus tempos de moço. Mas percebo que gostas muito da princesa, assim como ela gosta de ti. Por que não a pedes em casamento?
Então, o moço pediu a mão da princesa, e o casamento foi celebrado com a maior pompa. O gato assistiu, calçando um novo par de botas com cordões encarnados e bordados a ouro e preciosos diamantes.E daí em diante, passaram a viver muito felizes. E se o gato às vezes ainda se metia a correr atrás dos ratos, era apenas por divertimento; porque absolutamente não mais precisava de ratos para matar a fome...

Adaptado do conto de Charles Perrault

terça-feira, 22 de abril de 2008

"O homem que não queria sonhar e outras histórias"

Eu sou a Mª João, membro do Clube de Leitura, e li a obra "O homem que não queria sonhar e outras histórias" de Álvaro Magalhães.

Recomendo a leitura deste livro e aqui fica a história que mais gostei.

O homem que não queria sonhar

Era uma vez um homem que não queria sonhar. Achava que não devia perder tempo com coisas que, na sua opinião, não existiam ou não podiam acontecer.
- Sonhos são ilusões. Para que me servem? – Disse ele, certa vez, acrescentando: - Se fossem verdadeiros ou se se tornassem reais de manhã, quando acordamos, ainda valia a pena perder tempo com sonhos.
No mesmo instante em que ele pronunciou estas palavras, ouviu-se uma voz:
- É isso que tu queres?
O homem assustou-se, mas como não queria perder aquela oportunidade, gaguejou:
-É…é claro que é…
-Então, eu dou-te esse poder – disse-lhe o senhor do Dia e da Noite.
O homem ficou tão contente e tão ansioso que s e foi deitar mais cedo nessa noite e mal adormeceu sonhou com uma coisa que sempre desejou possuir: uma carruagem.
E no dia seguinte teve uma carruagem.
Depois quis ter uma carruagem maior, um barco e uma casa.
E teve uma carruagem maior, um barco e uma casa.
E depois teve um jardim e um lago, mil barras de ouro e um palácio de mármore e jade, e um grande exército para o servir, e tornou-se um dos homens mais ricos e poderosos de todo o mundo apenas porque foi capaz de sonhar durante a noite com tudo isso.
Mais tarde ainda foi nomeado Imperador do seu país e teve mais riquezas e honrarias do que qualquer outro homem, mas não se deu por satisfeito e continuou à procura de mais qualquer coisa. E não parava de sonhar.
Certa noite, porém, adormeceu de repente e sonhou que tinha morrido. Ao princípio não se preocupou, já que se tratava apenas de um sonho, mas depois lembrou-se que todos os sonhos se realizavam na manhã seguinte, e ele morreria se realmente acordasse.
Fez então um grande esforço para continuar adormecido, embora isso lhe custasse o afastamento de todas as coisas boas que poderia ter ou fazer se estivesse acordado. Embora elas lhe pertencessem, agora só podia pensar nelas, sonhar com elas. Mesmo assim deixou-se estar e não quis acordar.
E assim ficou para sempre, adormecido, prisioneiro do seu próprio sonho.
Nunca mais acordou. Nunca mais acordará.




Álvaro Magalhães, O homem que não queria sonhar e outras histórias, edições ASA

segunda-feira, 21 de abril de 2008

O patinho feio

Como estava lindo o campo! Era Verão, as searas de trigo pareciam douradas, a aveia estava ainda verde e, ao longo dos prados, os montes de feno exalavam um suave aroma. Um grupo de cegonhas passeava com as suas longas pernas vermelhas, tagarelando em egípcio, a língua que todas elas tinham aprendido com as suas mães.
Em redor dos campos e dos prados estendiam-se vastas florestas que escondiam lagos profundos. Sim, na verdade o dia estava maravilhoso.
Através dos raios de sol vislumbrava-se uma velha mansão, rodeada por uma vala profunda. Das paredes da mansão até à borda da água cresciam grandes folhas de nenúfares. Algumas delas eram tão grandes que as crianças mais pequenas podiam ficar de pé entre elas, sem que ninguém as visse.
Neste emaranhado de folhas, tão denso como a floresta, uma pata chocava os ovos no seu ninho. Estava um pouco impaciente porque chocar ovos é uma tarefa aborrecida e, além disso, ninguém a vinha visitar. As outras patas preferiam nadar lá longe, ao longo da vala.
Um belo dia, as cascas dos ovos começaram a rachar.
- Piu, piu! – Gritavam os patinhos, assim que punham a cabeça de fora.
- Quá, quá! – Respondia-lhes a pata.
Assim que podiam, espreitavam por entre as folhas observando o mundo verde que se estendia em seu redor. A mãe deixava-os à vontade, porque o verde faz bem aos olhos.
- Como é grande o mundo! – Admiravam-se os patinhos, habituados ao pouco espaço que havia dentro dos ovos.
- Então julgam que o mundo é só isto que vêem? – Perguntou-lhes a mãe. – Pois fiquem sabendo que se estende muito para lá do jardim, até à quinta do Sr. Prior. Mas, na verdade, eu nunca fui tão longe.
Dizendo isto, levantou-se para ver se já tinham nascido todos os patos.
- O ovo maior ainda aqui está. Quanto tempo será ainda preciso? Já estou farta! – Queixou-se ela, sentando-se novamente no ninho.
- Como vai, comadre? – Cumprimentou uma velha pata que a viera visitar.
- Este último ovo está a demorar muito. Nunca mais nasce! Mas veja como os outros são lindos! São tal e qual o malandro do pai, que nem sequer me veio visitar.
- Deixe-me dar uma olhada a esse ovo. – Pediu a velha pata. – Ah! É um ovo de perua, pode ter a certeza. Já me enganaram uma vez assim. Tive cá um trabalhão com aquele miúdo… Os perus têm medo da água e eu nunca consegui que ele nadasse. Mergulhei e chapinhei para ele aprender, mas nada! Eu, no seu lugar, deixava-o aí e ia ensinar os outros patinhos a nadar.
- Oh, isso não! Já agora espero mais alguns dias.
- Ora, a comadre é que sabe – respondeu a velha pata, nadando para longe.
Por fim, o ovo estalou. “Piu, piu”, gritou o patinho. Era maior do que os outros e muito feio.
- Que grande e que feio! – Disse a mãe. – Não se parece nada com os outros. Será um peru? Bem, bem, veremos. Há-de nadar, nem que tenha que lhe bater!
No dia seguinte fazia um tempo esplêndido. A mãe pata levou a família para o fosso. Lançou-se à água e os patinhos seguiram-na. De vez em quando a água cobria-lhes a cabeça, mas eles voltavam logo à superfície, nadando na perfeição. Todos se tinham atirado à água, até mesmo o maior e mais feio.
- Afinal, não é um peru – disse a mãe. – Vejam como mexe bem as patas e como se mantém direitinho na água. É meu filho, sem dúvida, e é bastante bonito, por sinal. Venham, venham, vou mostrar-vos o mundo e apresentar-vos à sociedade. Fiquem perto de mim e cautela com o gato!
No lago havia uma grande barulheira porque duas famílias disputavam uma enguia. Mas, no final, o gato apanhou-a e comeu-a.
- Observem e aprendam. O mundo é assim… - Disse a pata que teria gostado muito de comer a enguia. – Pernas direitas e peito erguido. Curvem o pescoço àquele pato velho. É o mais nobre de todos nós. É de raça espanhola. Estão a ver o anel vermelho que tem à volta da pata? Aquilo é a mais alta distinção que um pato pode ter. Mostra ao mundo como é precioso e que deve merecer uma atenção especial tanto do homem como dos outros animais. Abanem-se! Não ponham as patas para dentro. Um pato bem-educado põe as patas para fora, tal como os seus pais. Muito bem! Cumprimentem e digam quá!
Os patinhos fizeram tudo o que ela mandou, mas os outros olharam-nos e disseram:
- Já somos muitos, não nos fazia falta mais uma ninhada!
- Vejam! Que pato tão feio! – Observou um deles, atirando-se ao pescoço do patinho feio.
- Deixa-o! – Gritou a mãe. – Ele não te fez mal nenhum…
- É verdade, mas é tão grande e tão estranho que está mesmo a pedi-las.
- Mas que linda ninhada! – Exclamou o velho pato. – São todos muitos lindos, excepto aquele. Não saiu tão bem… É uma pena que não o possa chocar novamente.
- Isso é impossível, senhor. – Respondeu a mãe, alisando as penas do filhote. – Não é tão bonito como os outros, mas é muito bonzinho e nada tão bem como eles ou até um pouco melhor. Espero que fique mais bonito quando crescer. Demorou muito tempo a chocar, é por isso que saiu assim. Mas, como é um macho, a beleza não tem grande importância.
- Os outros patinhos são muito lindos. – Continuou o pato espanhol. – São todos bem-vindos! Fiquem à vontade e, se encontrarem uma enguia, tragam-ma.
A ninhada foi muito bem recebida por todos. Mas, o patinho que tinha sido o último a nascer e que era muito feio, foi empurrado, bicado e achincalhado tanto pelos outros patos como pelas galinhas.
- É enorme! – Diziam.
O galo da índia, que se julgava imperador por ter nascido com esporões, atirou-se a ele como um barco de velas enfunadas e bicou-o, bicou-o, até lhe deixar o pescoço ferido. O pobre patinho não sabia o que fazer. Estava muito triste por ser tão feio e por ser o alvo da chacota de todos.
Cada dia era pior do que o anterior. Até os próprios irmãos o tratavam mal.
- Era uma sorte para todos nós se o gato te apanhasse! – Diziam-lhe eles.
- Quem me dera que estivesses bem longe daqui! – Acrescentava a mãe.
Os patos mordiam-no, as galinhas bicavam-no e a rapariga que tratava dos animais dava-lhe pontapés.
Então fugiu dali, voando por cima da sebe. Os passarinhos dos silvados voaram espavoridos à sua passagem.
- É porque sou horroroso – pensou ele.
Cerrou os olhos e correu, correu, até que chegou ao paul onde viviam os patos selvagens. Esgotado e muito triste, deixou-se cair sobre a erva e adormeceu.
Na manhã seguinte, os patos selvagens foram conhecê-lo.
- Que espécie de criatura és tu? – Perguntaram eles.
O patinho, desejando agradar, cumprimentou-os inclinando o pescoço o melhor que sabia.
– És muito feio, mas não nos incomoda, desde que não cases com ninguém da nossa família.
Pobre patinho! Casar? Tudo o que ele desejava era que o deixassem viver ali.
Dias depois, chegaram dois gansos selvagens. Eram jovens e muito convencidos.
- Olá, amigo, - disseram-lhe – a tua fealdade diverte-nos. Vem connosco e serás, como nós, uma ave de arribação. No próximo ano, em Março, haverá por aí muitas jovens patas que te acharão maravilhoso!
Bing! Bang! Ouviram-se tiros e os gansos caíram na água. Bing! Bang! Ouviram-se novamente tiros de espingarda e bandos de patos e de gansos voaram espavoridos. Estava em curso uma grande caçada. Os caçadores haviam-se escondido à volta do paul e alguns estavam em cima dos ramos das árvores que pendiam sobre os juncos. Nuvens de fumo azulado saíam da sombra das árvores e estendiam-se sobre a água.
Chegaram os cães de caça – splash, splash - e os juncos dobraram-se à sua passagem. Muito assustado, o patinho ia esconder a cabeça debaixo da asa quando, nesse mesmo instante, surgiu à sua frente um cão enorme. A língua pendia-lhe da boca e os olhos cruéis brilhavam horrivelmente. Arreganhou os dentes pontiagudos e – splash, splash – seguiu o seu caminho sem tocar no patinho.
- Sou tão feio que nem o cão se deu ao trabalho de me morder - murmurou ele, muito aliviado.
Ficou imóvel enquanto a caçada durou. O dia já ia avançado quando a calma voltou ao paul. Ainda assim, o patinho não ousou mexer-se. Esperou horas a fio. Quando, por fim, se aventurou a espreitar em redor, desatou a correr o mais depressa que pode, fugindo do paul. Atravessou campos e vales, lutando contra o vento que o fustigava impiedosamente.
Ao anoitecer chegou a uma pobre choupana de lavrador, tão arruinada que se podia dizer que, o que a mantinha de pé, era o não saber para que lado havia de cair.
O vento era tão forte que o patinho teve que se sentar sobre a cauda para não voar.
Foi então que viu que a porta da choupana não estava bem segura: havia uma pequena fresta por onde podia entrar. Foi isso que fez.
Na choupana vivia uma velha mulher com um gato e uma galinha. O gato, a quem ela chamava “Bichano”, sabia arquear a espinha, ronronar e lançar faíscas, embora, para isso, fosse necessário esfregar-lhe o pêlo em sentido contrário. A galinha tinha umas patas curtinhas e, por isso, chamavam-lhe “Rasteira”. Era uma excelente poedeira e a velha senhora gostava dela como de uma filha.
De manhã, notaram a presença do patinho. O gato ronronou e a galinha cacarejou.
- O que se passa? – Murmurou a velha senhora, olhando em redor.
Mas, como era curta de visão, pensou que o patinho era uma pata adulta e gorda, que se tinha perdido.
- Que bom! – Exclamou, satisfeita. – Agora vou ter ovos de pata, a não ser que seja um pato. Há que aguardar.
O patinho ficou em observação durante três semanas, mas não pôs nenhum ovo.
Na choupana, o gato era o dono e a galinha a dona. Diziam sempre “Nós e o mundo”, porque se consideravam meio mundo e a metade mais importante. O patinho achava que havia outras maneiras de ver as coisas, mas a galinha não o ouvia.
- Consegues pôr ovos? – Perguntava-lhe ela.
- Não…
- Então tem cuidado com o que dizes…
- Sabes arquear a espinha, ronronar ou lançar faíscas? – Perguntava o gato.
- Não…
- Então guarda a tua opinião e ouve o que as criaturas sensatas têm para dizer.
O patinho sentou-se a um canto, muito triste. Recordou-se, então, do ar fresco e da luz do sol. Sentiu um desejo tão forte de nadar nas águas do lago que não se conteve e desabafou com a galinha.
- O que te passou pela cabeça? – Gritou ela. – Como não tens nada que fazer, só pensas em disparates. Põe um ovo ou aprende a ronronar, que isso passa-te.
- Mas é tão refrescante flutuar sobre a água, - respondeu o patinho – é tão agradável senti-la sobre nós quando mergulhamos…
- Sim, deve ser muito agradável! – Replicou a galinha. – Acho que endoideceste. Pergunta ao gato, que é a criatura mais ajuizada que conheço, se ele gosta de nadar ou de mergulhar. Por mim, não digo nada. Mas pergunta à velha senhora, a nossa dona. Não há ninguém mais sábia do que ela. Achas que ela quer ir nadar e sentir a água sobre a cabeça?
- Vocês não me compreendem… - respondeu o patinho.
- Bem, se nós não te compreendemos quem o poderá fazer? – Continuou a galinha. - Com certeza que não te consideras mais inteligente do que o gato ou do que a velha senhora – isto para não falar de mim própria. Não sejas tão presumido, miúdo. Agradece ao Criador o que tens recebido de nós. Por acaso não foste bem acolhido quando chegaste a esta choupana? Não vês que podes aprender connosco? Mas, como és tão teimoso, não é nada agradável viver contigo. Acredita, falo assim para o teu bem. Sei que digo verdades desagradáveis, mas é assim que os verdadeiros amigos devem falar. Vê lá se pões alguns ovos. Vê se aprendes a ronronar ou a lançar faíscas.
- Acho que é melhor regressar ao mundo selvagem – disse o patinho.
- Faz como entenderes – respondeu a galinha.
O patinho foi-se embora. Nadou livremente no lago, mas continuou a ser o alvo da chacota de todos, porque era muito feio.
Chegou o Outono. As folhas das árvores da floresta adquiriram tons dourados e castanhos. O vento arrastou-as, em remoinhos. O ar arrefeceu e as nuvens carregaram-se de neve e de granizo. Empoleirado numa sebe, um corvo grasnou – Craw, craw – cheio de frio. Pobre patinho!
Um dia, mesmo quando o sol desaparecia no horizonte, viu um bando de aves enormes e muito belas a sair das moitas. O patinho nunca tinha visto aves tão lindas. Eram de uma brancura deslumbrante e tinham pescoços longos e graciosos. Eram cisnes.
Lançaram um estranho grito enquanto abriam as asas magníficas, voando para longe, na direcção dos países quentes onde os lagos nunca gelam. Subiram tão alto, tão alto, que o patinho feio sentiu uma estranha inquietação, enquanto as observava. Girou na água como uma roda, estendeu o pescoço para as seguir com o olhar e lançou um grito tão estranho que se assustou a si próprio. Oh! Não conseguia esquecer aquelas esplêndidas aves.
Assim que as deixou de ver, mergulhou até ao fundo e, quando voltou à superfície, estava fora de si. Não conhecia aquelas aves nem sabia onde tinham nascido. No entanto, amava-as profundamente. Não as invejava, pois como poderia ele sonhar sequer vir a ser tão belo como elas? Teria ficado muito feliz se ao menos os patos o tivessem tolerado…
O frio era cada vez mais intenso - tão intenso que o patinho tinha que nadar sempre à superfície da água para não a deixar gelar. Mas o buraco onde nadava ia ficando cada vez mais pequenino. Viu-se obrigado a agitar as patas constantemente, para evitar que o gelo o encurralasse. Por fim, demasiado cansado para continuar, ficou preso no gelo.
De manhã cedo, um lavrador passou por ali e viu o que se passava. Apressou-se a quebrar o gelo e levou-o para sua casa.
No calor da cozinha, o patinho voltou à vida. As crianças quiseram brincar com ele, mas ele pensou que lhe queriam fazer mal. Aterrorizado, voou para dentro da vasilha do leite, sujando tudo à sua volta. A mulher do lavrador gritou e bateu as palmas. Cada vez mais assustado, refugiou-se na batedeira das natas e dali saltou para a amassadeira da farinha. Imaginem a cena! A mulher gritava e corria atrás dele com a tenaz. As crianças esbarravam umas nas outras ao tentarem apanhá-lo, gritando e rindo às gargalhadas. Felizmente, a porta estava aberta e o patinho escapuliu-se para a mata. Esgotado, deixou-se cair na neve fofinha.
Seria demasiado triste contar todos os padecimentos e todas as dificuldades que o patinho teve que sofrer durante aquele Inverno. Quando o calor do sol se fez sentir novamente, o patinho ainda estava vivo. As cotovias recomeçaram a cantar quando a Primavera chegou.
Então, de repente, abriu a asas e lançou-se no ar. Bateu as asas com uma força inesperada voando para longe. Antes de se aperceber do que estava a acontecer, viu-se num grande jardim cheio de macieiras em flor. Os sabugueiros enchiam o ar com doces aromas e estendiam os longos ramos sobre um lago. Oh! Como tudo cheirava a Primavera!
De repente, surgiram no lago três cisnes maravilhosos. Agitaram as penas e nadaram suavemente. O patinho reconheceu aquelas criaturas tão nobres, e sentiu-se estranhamente melancólico.
- Vou para junto daquelas aves maravilhosas. Vão-me desfazer à bicada porque sou horrível, mas não me importo. É melhor morrer às suas mãos do que ser mordido pelos patos, bicado pelas galinhas, enxotado pela rapariga que trata da capoeira, ou sofrer as misérias do Inverno.
Lançou-se à água e nadou na direcção dos cisnes. Eles viram-no e nadaram ao seu encontro.
- Matem-me! – Gritou o patinho, enquanto inclinava a cabeça sobre a água, esperando a morte certa.
Mas o que viu ele, espelhado na água do lago? Viu o seu próprio reflexo que já não era o reflexo de um patinho feio e desajeitado. Era um cisne!
Nascer num ninho de pato não tem qualquer importância, quando se vem de um ovo de cisne.
Sentiu-se contente por ter passado tantos trabalhos e infortúnios, pois agora dava valor ao que tinha e à beleza que o rodeava. Os grandes cisnes cercaram-no e acariciaram-no com os bicos.
Chegaram algumas crianças que vinham deitar bocadinhos de pão na água do lago. O mais pequenino de todos, gritou:
- Olhem, está ali um novo.
- Sim, é verdade! – Responderam as outras crianças, batendo palmas enquanto corriam a chamar os pais.
Voltaram todos e atiraram à água bocadinhos de pão e de bolo, enquanto diziam:
- O novo cisne é o mais belo de todos. É tão novo e tão lindo…
Os outros cisnes inclinaram os pescoços, em sua honra.
Então sentiu-se muito envergonhado e escondeu a cabeça debaixo da asa. Não percebia bem o que se passava. Sentia-se muito feliz, mas não se sentia orgulhoso. Um bom coração nunca se deixa vencer pelo orgulho. Pensava como tinha sido perseguido e agora ouvia dizerem que era o mais belo de todos os cisnes. Até o sabugueiro inclinava os ramos para o saudar, e o sol brilhava docemente. Então ergueu o pescoço bem alto e gritou do fundo do coração:
- Nunca imaginei que pudesse ser tão feliz, quando era o patinho feio.

Hans Christian Andersen

sexta-feira, 18 de abril de 2008

O HOMEM QUE VENDIA PROVÉRBIOS

À beira de Verdes Bosques chegou naquela manhã um vendedor que ninguém conhecia. Era baixo, delgado como um vime e tinha os cabelos todos brancos. Gritava:
- Provérbios! Provérbios! Provérbios novos e usados! Uma moeda cada um! Quem quer provérbios?
-E que fazemos nós com os provérbios? - perguntou-lhe muito admirada uma gorda padeira.
- Eh! Eh! - respondeu o homem. - Claro que com os provérbios não poderá fazer um avental ou fritar dois ovos, mas em compensação enriquecerá o seu pensamento. Não sabe que em cada provérbio está um quilo de bom senso?
- Essa é boa! - observou um homem que tinha um nariz vermelho de ébrio.
- Então, por uma moeda, que provérbio poderás vender-me, velhote?
O vendedor olhou-o longamente e depois vendeu-lhe este provérbio:
- "Quem do vinho é amigo, de si próprio é inimigo."
- Dê-me também um - pediu uma mulher, estendendo a sua moeda.
- Ora aqui tem o que lhe vai a matar... - respondeu o velho. - "Em boca fechada não entram moscas..."
A mulher, que era conhecida em toda a região por ser muito faladora, foi-se embora, envergonhada.
E foi assim que naquele dia, em Verdes Bosques, grandes e pequenos compraram, apenas por uma moeda, um quilo de bom senso.

António Sérgio

quinta-feira, 17 de abril de 2008

A Gata Borralheira

Era uma vez um fidalgo que casara em segundas núpcias com a mulher mais arrogante e orgulhosa que alguma vez se viu, mãe de duas filhas como ela e iguais como duas gotas de água. O marido também tinha uma filha, mas esta era doce e boa como a sua mãe, que fora a melhor pessoa do mundo.
Assim que se casaram, a madrasta mostrou logo que era muito má. Não podia suportar as boas qualidades da rapariguinha, pois, ao lado dela, as suas filhas pareciam ainda mais antipáticas. Por isso, começou a obrigá-la a fazer os trabalhos domésticos mais humildes: tratava da cozinha, limpava as escadas, arrumava os quartos da senhora e das suas filhas; dormia no sótão, num colchão de palha, enquanto as irmãs dormiam em quartos bonitos, com espelhos onde se podiam ver da cabeça aos pés. A pobre menina suportava tudo aquilo com paciência e não se queixava ao pai, porque sabia que ele lhe ralharia.
Quando acabava de limpar a casa, a boa rapariga refugiava-se a um canto da lareira e sentava-se nas cinzas. Por isso chamavam-lhe Gata Borralheira. Esta, porém, com os seus pobres vestidinhos, era cem vezes mais bonita do que as suas meias-irmãs que, no entanto, se vestiam como grandes senhoras.
Um dia o filho do rei organizou um baile e convidou todas as pessoas importantes. As duas irmãs foram convidadas, porque eram pessoas distintas no país. Começaram logo a escolher os vestidos e os penteados mais bonitos, cheias de alegria. A Gata Borralheira, coitada, teve que engomar os saiotes e os punhos dos vestidos das irmãs. Em casa só se falava do modo como iriam vestidas na noite da festa.
- Eu - decidiu a mais velha - vou levar o vestido de veludo vermelho com guarnição de renda da Inglaterra.
- Eu - declarou a mais nova - vou vestir o meu vestido do costume mas com o manto de flores de ouro e o colar de diamantes. Ficará um fato invulgar!
Chamaram as melhores cabeleireiras que lhes fizeram duas filas de caracóis. Por fim, chamaram a Gata Borralheira, cujo gosto muito apreciavam, para que desse a sua opinião. Ela deu-lhes óptimos conselhos, além de se oferecer para as ajudar a vestir, o que aceitaram imediatamente. Enquanto as vestia e penteava, as meias-irmãs perguntaram:
- Ó Gata Borralheira, gostavas de ir ao baile?
- Ah, meninas, estão a troçar! Essa festa não é para mim!
- Tens razão! Até dava vontade de rir, ver uma Gata Borralheira como tu num baile!
Qualquer outra rapariga no lugar dela teria feito tudo para as vestir mal, mas como era boa, vestiu-as melhor do que ninguém. As meias-irmãs fizeram dieta, não comeram durante dois e ficarem com cinturas de vespa.
Chegou finalmente o grande dia e as irmãs partiram. A Gata Borralheira seguiu-as com os olhos enquanto pôde e, quando desapareceram, desatou a chorar. A madrinha, que tinha vindo visitá-la, quis saber o que se passava.
- Eu queria... eu queria... - a Gata Borralheira chorava de tal maneira que nem conseguia falar.
A madrinha, que era uma fada, consolou-a:
- Também querias ir ao baile, não é?
- É isso mesmo - suspirou.
- Bem, prometi a mim própria ajudar-te e vou fazer com que vás ao baile - garantiu a madrinha. - Vai à horta e traz-me uma abóbora.
A Gata Borralheira foi a correr buscar a abóbora mais bonita que conseguiu encontrar. A madrinha esvaziou-a muito bem, até ficar só a casca, bateu-lhe com a varinha mágica e, de um momento para o outro, ela transformou-se numa linda carruagem completamente dourada.
A seguir, foi ver a ratoeira onde encontrou seis ratinhos ainda vivos. Pediu à Gata Borralheira que levantasse o ferro que os prendia e mal cada ratinho saía tocava-lhe com a varinha mágica. Imediatamente ele se transformava num belo cavalo. Assim conseguiu seis cavalos magníficos, cinzentos cor de rato. Mas como não soubesse de que havia de fazer o cocheiro, a Gata Borralheira lembrou:
- Vou ver se na outra ratoeira há algum rato, para fazer o cocheiro.
- Está bem - concordou a madrinha. - Vai ver.
Daí a pouco regressou com a ratoeira onde havia três grandes ratos. Dos três, a Fada escolheu o que tinha os bigodes mais compridos e, ao tocar-lhe, transformou-o num belo cocheiro com o bigode mais bonito que alguma vez se viu. Depois, a fada mandou:
- Vai ao jardim. Por trás do regador, encontrarás seis lagartos. Trá-los cá.
A Gata Borralheira obedeceu imediatamente. Trouxe os lagartos que a madrinha logo transformou em seis lacaios de librés magníficas. Estes subiram para a parte de trás da carruagem e ficaram lá, bem direitos como se nunca na vida tivessem feito outra coisa. Por fim, a fada perguntou:
- Aqui tens tudo o que é preciso para ires ao baile. Estás contente?
- Oh sim! Mas como hei-de ir com este vestido tão feio?
Mal a fada lhe tocou com a sua varinha, o pobre vestido transformou-se completamente. A Gata Borralheira tinha agora um vestido de brocado de ouro e prata, todo salpicado de pedras preciosas. Nos pés, um par de maravilhosos sapatinhos de cristal. Assim vestida, subiu para a carruagem.
A madrinha recomendou-lhe então que não voltasse depois da meia-noite, avisando-a de que, se ficasse no baile mais um minuto que fosse, a carruagem transformar-se-ia de novo em abóbora, os cavalos em ratinhos, os lacaios em lagartos e o vestido voltaria a ter o aspecto esfarrapado que ela conhecia.
A Gata Borralheira prometeu à madrinha que sairia do baile antes da meia-noite e partiu toda satisfeita. O filho do rei, a quem fora anunciada a chegada de uma princesa desconhecida, correu a recebê-la, deu-lhe a sua mão para a ajudar a descer da carruagem e conduziu-a à sala. Fez-se um grande silêncio. Todos pararam de dançar. Os violinos deixaram de tocar. Todos ficaram espantados com a grande beleza da menina. Só se ouvia murmurar:
- Oh! Como é linda!
O próprio rei, embora velho, segredou baixinho à rainha que há muitos anos não via mulher tão bonita e graciosa. Nenhuma dama tirava os olhos dela. Observavam atentamente o penteado e o vestido, para o poderem imitar no dia seguinte, mal descobrissem um tecido tão bonito e modista tão habilidosa. O príncipe concedeu-lhe um lugar de honra e convidou-a para dançar. Ela dançou com tanta elegância que deixou todos maravilhados. Foi servido um magnífico refresco, que ele nem sequer provou, de tal modo estava encantado. Foi então que ela foi para junto das meias-irmãs. Falou-lhes com delicadeza e ofereceu-lhes as laranjas e os limões que o príncipe lhe tinha oferecido, o que as encantou, tanto mais que não a reconheceram.
Enquanto conversavam, a Gata Borralheira ouviu o relógio tocar um quarto para a meia-noite. Imediatamente se despediu e partiu, rápida como o vento. Mal chegou a casa, foi ter com a madrinha. Agradeceu-lhe e disse-lhe que gostaria muito de ir à festa do dia seguinte, já que o filho do rei tanto lho tinha pedido.
Enquanto lhe contava os pormenores da festa, as duas irmãs tocaram à porta e a Gata Borralheira foi abrir.
- Vieram tão tarde! - disse ela, esfregando os olhos e espreguiçando-se, como se tivesse acabado de acordar.
Mas na verdade não sentia sono nenhum.
- Se tivesses ido ao baile - disse-lhe uma das irmãs - não te terias aborrecido. Estava lá a princesa mais bonita do mundo. Foi muito delicada connosco e ofereceu-nos laranjas e limões.
A Gata Borralheira não cabia em si de contente. Perguntou o nome da princesa, mas as irmãs não sabiam.
Contaram-lhe, porém, que o filho do rei queria muito saber quem ela era e que, para o saber, daria o que quer que fosse. A Gata Borralheira sorriu e disse:
- Então ela devia realmente ser muito bonita! Meu Deus, que sorte a vossa! Como gostava de a ver! Menina Julieta, empresta-me só por esta vez o seu vestido amarelo, o que usa todos os dias?
- Aquele que eu também quero? - Perguntou Julieta. - Emprestar o meu vestido a uma Gata Borralheira como tu? Só se eu fosse maluca!
A menina já esperava esta resposta e, por isso, ficou contente, pois estaria metida num grande sarilho se a meia-irmã lhe tivesse emprestado o vestido.
Na noite seguinte as duas irmãs foram de novo ao baile. A Gata Borralheira também foi, vestida de forma ainda mais luxuosa do que da primeira vez. O filho do rei não a deixou nem um momento e todo o serão lhe segredou frases apaixonadas e galantes. A menina, que não estava nada aborrecida, esqueceu-se das recomendações da madrinha de tal modo que, quando ouviu a primeira badalada da meia-noite, pensou que ainda fossem onze horas. Mas, ao dar-se conta do que se passava, levantou-se e fugiu, ligeira como um gamo. O príncipe correu atrás dela, mas não a conseguiu apanhar. Ao fugir, a Gata Borralheira perdeu um sapatinho de cristal que ele guardou com o maior carinho.
A Gata Borralheira chegou a casa sem fôlego, sem carruagem, nem lacaios. Trazia o vestido com que costumava andar e, de todo o luxo, apenas lhe restava um dos sapatinhos. Tinha perdido o outro no caminho.
Tentaram saber se os porteiros do palácio real haviam visto sair alguma princesa, mas eles responderam que não saíra ninguém, a não ser uma rapariga tão mal vestida que mais parecia uma camponesa.
Quando as irmãs regressaram do baile, logo a Gata Borralheira lhes perguntou se se tinham divertido e se lá estava também aquela linda senhora. Que sim, mas que fugira no momento em que batia a meia-noite, e tão depressa que deixara cair um dos seus sapatinhos de cristal, o sapatinho mais bonito do mundo. Que o filho do rei o tinha guardado e não fizera outra coisa senão olhar para ele enquanto durou o baile, o que queria dizer que se apaixonara perdidamente pela linda senhora a quem o sapatinho pertencia.
As irmãs diziam a verdade. Com efeito, poucos dias depois, o príncipe mandou proclamar ao som das trombetas que casaria com a menina em cujo pé o sapatinho servisse perfeitamente.
Em primeiro lugar experimentaram as princesas, depois as duquesas e todas as damas da corte, mas em vão. O sapatinho acabou por chegar a casa das duas irmãs, que fizeram o impossível para o calçarem, mas não conseguiram.
A Gata Borralheira, que as observava e que reconhecera o sapatinho, acabou por sugerir:
- Vejamos se me serve a mim!
As irmãs desataram a rir e a fazer pouco dela. O cavalheiro encarregado de experimentar o sapatinho, encantado com a beleza da Gata Borralheira, achou que era justo, uma vez que tinha ordem para que todas as meninas do reino o experimentassem. Deixou-a sentar-se e tentou calçar-lhe o sapatinho. Servia-lhe como uma luva. Grande foi o espanto das irmãs. Porém, maior ficou quando a Gata Borralheira tirou do bolso o outro e o calçou no outro pé.
Nesse momento chegou a madrinha que tocou com a varinha de condão nas roupas da Gata Borralheira, tornando-as mais luxuosas que nunca. Foi então que as irmãs reconheceram nela a linda senhora do baile e, ajoelhando-se aos seus pés, pediram-lhe desculpa pelos maus tratos. A Gata Borralheira mandou-as levantarem-se e abraçou-as. Disse-lhes que lhes perdoava do fundo do coração e pediu-lhes que gostassem sempre dela. Depois, magnificamente vestida, foi levada à presença do príncipe, aos olhos de quem parecia ainda mais bonita, e casaram poucos dias depois.
Como tinha tanto de bondosa como de bonita, convidou as duas meias-irmãs a irem ao palácio e, nesse mesmo dia, casou-as com dois fidalgos.

Charles Perrault

terça-feira, 15 de abril de 2008

A Bela Adormecida

Era uma vez um Rei e uma Rainha que viviam muito tristes por não terem filhos. Fizeram tratamentos em termas de todo o mundo, promessas, peregrinações e devoções especiais. Experimentaram tudo, mas sem resultado. Até que um dia a Rainha ficou grávida e deu à luz uma menina.
Fizeram-lhe um baptismo magnífico. Foram escolhidas como madrinhas da Princesinha todas as fadas que foi possível encontrar no país (e encontraram-se sete), para que, com os dons que lhe concedessem, conforme era costume das fadas naquele tempo, a Princesa tivesse todas as perfeições possíveis e imagináveis.
Depois da cerimónia do baptismo, regressaram todos em cortejo ao palácio real, onde tinha sido preparado um grande banquete em honra das fadas. O lugar de cada uma tinha sido marcado com um estojo de ouro maciço que continha uma colher, um garfo e uma faca de ouro, enfeitado com diamantes e rubis.
Enquanto cada qual se sentava no seu lugar, chegou uma fada velha, que ninguém se tinha lembrado de convidar, pois havia mais de cinquenta anos que não saía da sua torre e todos pensavam que já estivesse morta. O Rei arranjou-lhe um lugar na mesa, mas não lhe foi possível dar-lhe um estojo de ouro maciço como o das outras, porque só haviam sido feitos sete, um para cada uma das sete fadas. A velha julgou que estavam a desprezá-la e resmungou entredentes palavras ameaçadoras.
Uma das jovens fadas, a que estava sentada ao seu lado, ouviu-a e, temendo que pudesse dar à Princesinha algum presente maléfico, mal todos se levantaram da mesa, foi-se esconder por detrás de um cortinado, para ser a última a falar e, deste modo, poder reparar o mal que a velha lhe viesse a fazer. Entretanto, as fadas começaram a desfiar os dons que traziam à princesa.
A mais jovem deu-lhe o condão de ser a mulher mais bonita do mundo; a segunda, o de ser boa como um anjo; a terceira, ter um encanto admirável em tudo o que fizesse; a quarta, dançar maravilhosamente; a quinta, cantar como um rouxinol; e a sexta, saber tocar qualquer instrumento musical com a máxima perfeição.
Chegada a sua vez, a velha fada disse, abanando a cabeça mais por despeito do que por velhice, que a Princesa espetaria o bico de um fuso na mão e, desse modo, morreria. Um tão terrível dom fez estremecer os presentes, e não houve quem não chorasse. Nesse preciso momento a jovem fada saiu de trás do cortinado e pronunciou em voz clara estas palavras:
- Rei e Rainha, tranquilizai-vos! A vossa filha não morrerá assim. Infelizmente, não tenho poder que chegue para desfazer tudo o que fez uma fada mais velha do que eu. Sim, a Princesinha picar-se-á na mão com um fuso, mas, em vez de morrer, apenas cairá num sono profundo que durará cem anos, findos os quais um príncipe virá acordá-la.
O Rei, desejoso de evitar a desgraça anunciada pela velha, mandou logo distribuir um edital em que se proibia, a quem quer que fosse, fiar com um fuso ou ter fusos em casa, sob pena de morte.
Passados quinze ou dezasseis anos, numa altura em que o Rei e a Rainha tinham ido para uma das suas casas de campo, aconteceu que a jovem Princesa, passeando pelo castelo de quarto em quarto, chegou ao cimo de uma torre. Aí, num pequeno sótão, encontrou uma simpática velha que estava sozinha a fiar.
- Que está a fazer, avozinha? - perguntou a Princesa.
- Estou a fiar, minha querida - respondeu-lhe a velha, que não a conhecia.
- Ah... Que bonito! - exclamou a Princesa. - Como se faz? Deixe-me experimentar, a ver se também sou capaz.
No seu entusiasmo, nem sequer teve tempo de pegar no fuso. O que a fada tinha anunciado, cumpriu-se e a jovem Princesa espetou a mão e caiu sem sentidos. A boa velha pôs-se a gritar por socorro. Acorreu gente de todo o lado. Salpicaram de água o rosto da Princesa, desapertaram-lhe os laços, deram-lhe pancadinhas nas mãos, esfregaram-lhe as têmporas com água-de-colónia, mas nada a fez voltar a si.
Então o Rei, que tinha subido depois de ouvir todo aquele rebuliço, lembrou-se do presságio das fadas. Mandou transportar a Princesa para o mais belo quarto do palácio e deitá-la numa cama bordada a ouro e prata. Parecia um anjo, tão bonita era. O desmaio não lhe alterara as cores: as faces permaneceram rosadas e os lábios cor de coral. Tinha os olhos fechados, mas podia sentir-se a respiração suave, o que significava que não morrera.
O Rei ordenou que a deixassem dormir tranquila, até que chegasse a sua hora de acordar. A fada boa que lhe salvara a vida, encontrava-se no reino de Mataquim, a doze mil léguas de distância, quando se verificou aquele incidente. Contudo, foi logo avisada por um anãozinho que calçava as botas das sete léguas. A fada partiu de imediato e, uma hora depois, viram-na chegar num carro de fogo, puxado por dragões.
O Rei deu-lhe o braço para a ajudar a descer do carro e a fada aprovou tudo o que ele tinha feito, mas, porque era muito previdente, pensou que, quando a Princesa acordasse, se sentiria perdida, se ficasse completamente sozinha naquele velho castelo.
Assim, tocou com a sua varinha em tudo o que se encontrava no castelo (excepto no Rei e na Rainha): governantas, damas de honor, criadas de quarto, cortesãos, oficiais, mordomos, cozinheiros, ajudantes, moços, guardas, pajens, escudeiros. Tocou também em todos os cavalos que havia nas cavalariças, nos grandes mastins de guarda e, por fim, na pequena Pufi, a cadelinha da Princesa, que estava junto dela na cama. Mal lhes tocou, todos adormeceram, para só acordarem quando a sua Princesa acordasse. Deste modo, todos estariam prontos a servi-la quando fosse necessário. Até os espetos que estavam ao lume cheios de perdizes e de faisões adormeceram; e o mesmo aconteceu com o lume.
Tudo isto se passou num instante: as Fadas são desembaraçadas nas suas tarefas.
Então o Rei e a Rainha, depois de terem beijado a sua querida filha sem a despertarem, saíram do castelo e decidiram proibir que alguém se aproximasse dali. Esta proibição não era necessária, pois dentro de um quarto de hora cresceu a toda a volta do parque uma tal quantidade de árvores, grandes e pequenas, de silvas e de tojos, tão emaranhados uns nos outros que nem animal, nem homem algum poderia passar. Assim, só se conseguiam ver as ameias das torres do castelo e mesmo só de muito longe.
Passados cem anos, o filho do rei que então reinava, e que pertencia a uma família diferente da da Princesa, passou por aqueles lugares à caça. Quis saber o que eram as torres que se avistavam sobre tão grande e tão densa floresta. Cada qual lhe repetia o que tinha ouvido dizer. Segundo uns, tratava-se de um velho castelo habitado por espíritos, segundo outros, todos os bruxos do país vinham celebrar ali as suas cerimónias mágicas. De acordo com a maioria das pessoas, o edifício era habitado por um ogre que para ali levava todas as crianças que conseguia apanhar, a fim de as comer confortavelmente e sem ser incomodado, pois só ele possuía o condão de abrir uma passagem através do bosque. O Príncipe não sabia em que havia de acreditar, até que um velho camponês lhe disse:
- Meu bom Príncipe, há mais de cinquenta anos ouvi o meu pai dizer que naquele castelo há uma Princesa, a mais bela do mundo. Deverá dormir durante cem anos e será acordada pelo filho de um Rei, ao qual está destinada.
Ao ouvir estas palavras, o jovem Príncipe sentiu uma grande emoção e decidiu sem hesitar que teria de ser ele a pôr fim a tão bela aventura. Levado pelo amor e pela glória, resolveu ir imediatamente saber o que realmente se passava.

Charles Perrault

segunda-feira, 14 de abril de 2008

O Capuchinho Vermelho

Era uma vez uma menina muito doce e muito meiga. Como era muito simpática, toda a gente gostava muito dela.
Um dia, a avó deu-lhe um capuchinho de veludo vermelho. A menina gostou muito do presente, passou a andar sempre com ele e, daí em diante, passaram a chamar-lhe «Capuchinho Vermelho».
Certo dia, a mãe chamou-a e disse-lhe:
- Leva este bolo e esta garrafa de vinho à tua avó que está doente e bastante fraca. Isto vai fazer-lhe bem. Vai sempre pelo caminho da floresta e não te afastes.
O Capuchinho Vermelho prometeu que se portaria bem, pegou na cesta com a comida e partiu depois de se despedir da mãe.
A avó morava no meio da floresta, longe da vila. Assim que a menina entrou na floresta, apareceu um Lobo muito grande, mas ela não sentiu medo nem desconfiou das suas más intenções, porque era muito inocente.
- Bom dia, Capuchinho Vermelho – cumprimentou o Lobo.
- Bom dia, Lobo – respondeu ela, delicadamente.
- Onde vais tão cedo, Capuchinho?
- Vou a casa da minha avó.
- E o que levas na cesta?
- Levo um bolo e uma garrafa de vinho. A minha avó está doente e estas guloseimas vão deixá-la forte e saudável.
- Onde mora a tua avó? – Quis saber o Lobo.
- Ainda falta um pouco para lá chegarmos. A casa dela tem uma sebe de aveleira e fica por baixo de três grandes carvalhos. Deves conhecê-la. – Informou a menina.
«Hum… que menina tão tenrinha! Se me despachar, posso almoçar a avó e saboreá-la à sobremesa.» - Pensou o Lobo.
- Olha à tua volta, Capuchinho Vermelho. Já reparaste como são lindas as flores desta floresta? Ouve o canto dos pássaros! És muito séria e caminhas sem ver a beleza que te rodeia. Olha para a floresta!
O Capuchinho Vermelho olhou em volta e viu os raios de Sol por entre a ramagem, o tapete de lindas flores que cobria o chão da floresta e pensou: «Se fizer um ramo com estas bonitas flores, tenho a certeza que a minha avó vai ficar muito feliz.»
Saiu do caminho e entrou na floresta para apanhar flores. Sempre que colhia uma flor, via mais adiante outra ainda mais bonita. Por isso, foi-se afastando cada vez, embrenhando-se na floresta.
Enquanto isso, o Lobo correu para casa da avó e bateu à porta.
- Quem é? – Perguntou a velhinha.
- Sou eu, o Capuchinho Vermelho – respondeu o Lobo, disfarçando a voz. – Trago um bolo e uma garrafa de vinho. Pode abrir-me a porta, avozinha?
- A porta está aberta. Levanta a tranca e entra. Não posso sair da cama porque estou muito fraca – respondeu a avó.
Foi o que o Lobo quis ouvir! Entrou em casa, correu para a cama e engoliu a avó num instante. Depois, vestiu as roupas da velhinha, cobriu a cabeça com uma toca, correu as cortinas da cama e deitou-se à espera do Capuchinho Vermelho.
Entretanto, a menina continuava na floresta a apanhar flores. Quando já tinha um ramo muito grande voltou ao caminho e continuou a andar para casa da avó.
Quando lá chegou, viu que a porta estava aberta. Surpreendida, entrou na sala e olhou em volta.
- «Por que será que sinto tanto medo? Não é costume sentir-me assim em casa da minha avozinha…» - pensou ela.
Aproximou-se da cama da avó e correu as cortinas. A avó estava deitada, com a toca na cabeça cobrindo-lhe parte do rosto. Parecia muito estranha…
- Avó, tens umas orelhas tão grandes!
- É para te ouvir melhor.
- Avó, tens uns olhos tão grandes!
- São para te ver melhor.
- Avó, tens umas mãos tão grandes!
- São para te abraçar melhor.
- Avó, tens uma boca tão grande e horrível!
- É para te comer melhor.
Dizendo isto, o Lobo saltou da cama e engoliu a menina. Depois, voltou a deitar-se, adormeceu e começou a ressonar muito alto.
Pouco depois, um caçador passou perto da casa. Ouviu o barulho e achou muito estranho que uma velhinha ressonasse tão alto. Resolveu ir ver o que se passava.
Entrou em casa e deu de caras com o Lobo deitado na cama. Percebeu logo o que se passara e pensou: «Deve ter comido a velhinha, mas talvez ela ainda esteja viva. Não posso dar-lhe um tiro».
Pegou numa tesoura e abriu a barriga do Lobo. Assim que começou a cortar, viu a ponta de um Capuchinho Vermelho. Cortou mais e a menina saltou cá para fora, exclamando:
- Tive tanto medo! Lá dentro está muito escuro…
A avó ainda estava viva e também se salvou.
Então a menina pegou numas pedras bem grandes e pesadas e colocou-as dentro da barriga do Lobo. Quando este acordou tentou fugir, mas não conseguiu porque as pedras pesavam muito. Caiu no chão e morreu.
O caçador ficou com a pele do Lobo. A avó comeu o bolo e bebeu o vinho que a neta lhe tinha trazido. O Capuchinho Vermelho pensou: «Nunca mais vou desobedecer à minha mãe e andar sozinha pela floresta»!

Irmãos Grimm

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Os músicos de Bremen

Era uma vez um burro que tinha trabalhado durante muitos anos para o seu dono, acartando sacos de milho. Com o tempo, foi perdendo as forças e acabou por não conseguir trabalhar como antigamente. Então, o dono resolveu cortar-lhe a ração. Vendo que dessa decisão não viria nada de bom para si, o Burro fugiu e pôs-se a caminho da cidade de Bremen.
- Em Bremen posso tornar-me músico – pensava ele enquanto caminhava.
Ainda mal tinha começado a jornada quando encontrou, à beira da estrada, um cão de caça que respirava sem fôlego como se tivesse acabado de correr muito.
- Por que respiras assim com tanta dificuldade? – Perguntou o Burro.
- Ah, sabes lá! Como estou velho e cada dia que passa me sinto mais fraco, já não posso caçar. O meu dono queria matar-me, mas eu fugi a sete pés. Mas, agora, o que vai ser de mim? – Queixou-se o Cão.
- Por que não vens comigo para Bremen? – Perguntou o Burro. - Vou tornar-me músico da cidade e tocar alaúde. Tu podias tocar tambor…
O Cão concordou e meteram-se ambos ao caminho.
Andaram algum tempo até que encontraram um Gato que estava muito, muito triste.
- O que te aconteceu, meu caça-ratos? – Perguntou o Burro.
- Quem é que se pode sentir feliz quando tem a vida em risco? – Queixou-se o Gato – Como estou velho e prefiro enroscar-me à lareira em vez de caçar ratos como antigamente, a minha dona quis afogar-me e eu fugi. Mas, agora, o que será de mim?
- Vem connosco para Bremen – convidou o Burro. – Podes ser um músico como nós e tocar nos concertos nocturnos.
O Gato concordou e foi com eles.
Pelo caminho passaram por uma quinta e viram um Galo empoleirado na cancela. Cantava a plenos pulmões.
- Por que te esganiças tanto? – Quis saber o Burro.
- Amanhã é Domingo - explicou o Galo - e a minha dona tem convidados. Mandou a cozinheira cortar-me o pescoço logo à noite e meter-me na panela. Por isso, canto enquanto posso.
- É melhor vires connosco, Galo vaidoso - convidou o Burro - tens uma bela voz e juntos faremos um belo quarteto.
O Galo concordou e partiu com os outros.
Como não podiam chegar a Bremen nesse dia, resolveram passar a noite numa floresta. O Burro e o Cão deitaram-se debaixo de uma árvore e o Gato e o Galo aninharam-se nos seus ramos. O Galo escolheu um dos ramos do topo da árvore porque aí se sentia mais seguro. Antes de adormecer, olhou em volta e viu ao longe uma luz a brilhar na escuridão. Chamou os colegas e disse-lhes que, naquela direcção, havia com certeza uma casa.
- Vamos até lá – propôs o Burro. – Aqui não estamos lá muito bem instalados.
Todos concordaram e puseram-se a caminho. Acabaram por chegar a uma velha casa de onde saía uma luz muito viva.
Como o Burro era o mais alto, foi ele quem espreitou primeiro.
- O que vês? – Perguntou o Cão.
- Vejo uma mesa repleta de iguarias e quatro salteadores que se estão a banquetear à farta – respondeu o Burro.
- Essa comida é que vinha mesmo a calhar – disse o Galo.
- Ah, se ao menos pudéssemos lá entrar… - acrescentou o Burro, cheio de fome.
Conversaram durante algum tempo e, por fim, os quatro amigos tiveram uma ideia para expulsar os salteadores.
O Burro apoiou as patas dianteiras no parapeito da janela, o Cão saltou para cima dele, o Gato saltou para cima do Cão e o Galo voou para cima do Gato. Depois, começaram a fazer barulho, cada um à sua maneira: o Burro zurrou, o Cão ladrou, o Gato miou e o Galo cantou. Enquanto faziam este concerto, saltaram através da janela, partindo os vidros em mil bocados. Os salteadores pensaram que se tratava de um fantasma horrível e fugiram a sete pés, rumo à floresta.
Muito satisfeitos, os quatro amigos sentaram-se à mesa e comeram tranquilamente até se fartarem. Depois, apagaram as velas e prepararam-se para dormir. O Burro deitou-se num fardo de palha que havia no pátio, o cão deitou-se atrás da porta das traseiras, o Gato enroscou-se junto das brasas da lareira e o Galo empoleirou-se numa das traves do tecto da casa. Como estavam muito cansados adormeceram num instante.
Por volta da meia-noite os salteadores voltaram. Estava tudo às escuras e não se ouvia barulho nenhum.
- Não nos devíamos ter assustado tanto – disse o chefe.
E mandou um dos seus homens à frente para examinar a casa.
O bandido entrou e dirigiu-se à lareira para acender uma vela. Os olhos do Gato luziam no escuro e o bandido pensou que eram duas brasas. Aproximou um fósforo do focinho do Gato para o acender. O Gato não gostou da brincadeira e saltou-lhe para a cara, arranhando-a muito, enquanto miava e soprava. O bandido ficou aterrorizado! Quis fugir pela porta das traseiras, mas o Cão atirou-se a ele e ferrou-lhe uma valente dentada na perna. Cada vez mais aterrorizado, o homem lançou-se a correr pelo pátio, passando perto do Burro que lhe deu dois valentes coices. Nisto, o Galo acordou em sobressalto e pôs-se a cantar:
- Có-có-ró-có-có! Có-có-ró-có-có!
O bandido fugiu o mais depressa que pode. Quando chegou perto dos outros, gritou apavorado:
- Estamos perdidos! Está uma bruxa horrorosa sentada à lareira. Cuspiu-me e arranhou-me a cara com as suas unhas enormes. Junto à porta está um homem que me esfaqueou a perna. No pátio está um monstro que me bateu com um cacete. Em cima do telhado está o chefe deles todos que gritou: «Corre senão comes! Corre senão comes!» Foi o que fiz, para não apanhar mais.
Os salteadores nunca mais se atreveram a voltar àquela casa.
Quanto aos quatro músicos de Bremen, sentiram-se tão bem por lá que resolveram nunca mais sair… e, quanto a mim, ainda lá devem estar!

Irmãos Grimm

quarta-feira, 9 de abril de 2008

A Polegarzinha

Era uma vez uma mulher que queria muito ter um filho, mas que não conseguia realizar este seu desejo. Um dia foi procurar uma fada e pediu-lhe:
- Gostava tanto de ter um filho! Ajuda-me, por favor.
- Isso é fácil - respondeu-lhe a fada. - Aqui tens um grão de cevada especial. É muito diferente da que cresce na seara do lavrador e é comida pelas galinhas. Planta-a num vaso de flores e repara bem no que lhe vai acontecer.
- Obrigada - disse a mulher, dando doze moedas à fada, que era o preço do grão de cevada.
Regressou a casa, plantou-o, brotando logo da terra uma grande e bela flor semelhante a um botão de túlipa.
«Que linda flor!», disse a mulher, dando um beijo nas pétalas vermelhas e douradas; nesse mesmo instante, a flor desabrochou com um grande ruído. Via-se agora que era uma autêntica túlipa; mas no seu interior, sobre um fundo verde, estava sentada uma minúscula menina, encantadora, que teria, quando muito, a altura de um polegar. Por isso, passaram a chamar-lhe Polegarzinha.

Hans Christian Andersen

terça-feira, 8 de abril de 2008

Teófilo Braga

Joaquim Teófilo Fernandes Braga (1843-1924) nasceu em Ponta Delgada e faleceu em Lisboa.Natural dos Açores, porque nascido na cidade de Ponta Delgada em 24 de Fevereiro de 1843, Joaquim Teófilo Braga foi o sétimo filho de um casamento celebrado entre Joaquim Manuel Fernandes Braga, um antigo oficial miguelista, e Maria José da Câmara Albuquerque, filha de um descendente dos donatários da ilha de Santa Maria.A infância do pequeno Joaquim ressentiu-se da irreparável perda da sua mãe, falecida prematuramente, e do jugo que sobre ele exerceu, com rudeza e severidade, uma inclemente madrasta, Ricarda Marfim Pereira de seu nome. Os estudos primários e secundários foram realizados na capital da ilha micaelense e revelaram desde cedo a tenacidade de um jovem ambicioso e lutador. Teófilo Braga foi disciplinarmente punido no Liceu de Ponta Delgada, onde seu pai exercia actividades lectivas, por ter ridicularizado um professor que lhe contestava a pretensão de um dia ser doutor, arguindo que não via moita da qual pudesse sair tal coelho; respondeu o discípulo, em jeito escarninho, declarando que o dito professor não tinha faro...
Acabados os estudos liceais, passou a impor-se o problema de dar rumo à vida. Os meios económicos familiares eram escassos e a tradição dos ilhéus desamparados era a de procurarem melhores condições de sobrevivência através da emigração, sobretudo dirigida para as Américas. Por isso, Teófilo Braga começou por informar o pai do seu desejo de abandonar S. Miguel e de ir exercer em solo americano uma actividade profissional, talvez de tipógrafo, talvez de comerciante, talvez de assalariado numa qualquer actividade remunerada. O pai colocou-lhe a hipótese, mais aliciante, de ir estudar para Coimbra, embora o tivesse então advertido da fraca mesada que lhe poderia dispensar.Cedo revela queda para a literatura. Em 1861 vai para Coimbra, onde frequenta o curso de Direito.

Terminado o curso de Direito, vai viver para o Porto e em 1872 fixa-se em Lisboa, passando a leccionar literatura no Curso Superior de Letras. Republicano militante, em 1910 é convidado para presidente do Governo Provisório, tendo sido mais tarde eleito Presidente da República (1915). Dedicou-se à história da literatura portuguesa e aos estudos etnográficos.
Além de obras de carácter histórico-literário, escreveu também poesia, ficção, etnografia e filosofia.


Obras poéticas: Visão dos Tempos ((1864), Tempestades Sonoras (1864), Torrentes (1869), Miragens Seculares (1884). Ficção: Contos Fantásticos (1865), Viriato (1904). Ensaio: As Teorias Literárias – Relance sobre o Estado Actual da Literatura Portuguesa (1865), História da Poesia Moderna em Portugal (1869), História da Literatura Portuguesa (Introdução) (1870), História do Teatro Português (4 vols., 1870-1871), Teoria da História da Literatura Portuguesa (1872), Manual da História da Literatura Portuguesa (1875), Bocage, sua Vida e Época (1877), Parnaso Português Moderno (1877), Traços gerais da Filosofia Positiva (1877), História do Romantismo em Portugal (1880), Sistema de Sociologia (1884), Camões e o Sentimento Nacional (1891), História da Universidade de Coimbra (4 vols., 1891-1902), História da Literatura Portuguesa (4 vols., 1909-1918).

Antologias: Cancioneiro Popular (1867), Contos Tradicionais do Povo Portugês (1883).

segunda-feira, 7 de abril de 2008

O APRENDIZ DE MAGO

Um homem de grandes artes tinha na sua companhia um sobrinho, que lhe guardava a casa quando precisava sair. De uma vez deu-lhe duas chaves, e disse:
- Estas chaves são daquelas duas portas; não mas abras por cousa nenhuma do mundo, senão morres.
O rapaz, assim que se viu só, não se lembrou mais da ameaça e abriu uma das portas. Apenas viu um campo escuro e um lobo que vinha correndo para arremeter contra ele. Fechou a porta a toda a pressa passado de medo. Daí a pouco chegou o Mago:
- Desgraçado! Para que me abriste aquela porta, tendo-te avisado que perderias a vida?
O rapaz tais choros fez que o Mago lhe perdoou. De outra vez saiu o tio e fez-lhe a mesma recomendação. Não ia muito longe, quando o sobrinho deu volta à chave da outra porta, e apenas viu uma campina com um cavalo branco a pastar. Nisto lembrou-se da ameaça do tio e já o sentindo subir pela escada, começou a gritar:
- Ai que agora é que estou perdido!
O cavalo branco falou-lhe:
- Apanha desse chão um ramo, uma pedra e um punhado de areia, e monta já quanto antes em mim.
Palavras não eram ditas, o Mago abriu a porta da casa: o rapaz salta para cima do cavalo branco e grita:
- Foge! Que aí chega o meu tio para me matar.
O cavalo branco correu pelos ares fora; mas indo lá muito longe, o rapaz torna a gritar:
- Corre! Que meu tio já me apanha para me matar.
O cavalo branco correu mais, e quando o Mago estava quase a apanhá-los, disse para o rapaz:
- Deita fora o ramo.
Fez-se logo ali uma floresta muito fechada, e, enquanto o Mago abria caminho por ela, puseram-se muito longe. Ainda o rapaz tornou outra vez a gritar:
- Corre! Que já aí está meu tio, que me vai matar.
Disse o cavalo branco:
- Bota fora a pedra.
Logo ali se levantou uma grande serra cheia de penedias, que o Mago teve de subir, enquanto eles avançavam caminho. Mais adiante, grita o rapaz:
- Corre, que meu tio agarra-nos.
-Pois atira ao vento o punhado de areia, disse-lhe o cavalo branco.
Apareceu logo ali um mar sem fim, que o Mago não pôde atravessar. Foram dar a uma terra onde se estavam fazendo muitos prantos. O cavalo branco ali largou o rapaz e disse-lhe que quando se visse em grandes trabalhos por ele chamasse mas que nunca dissesse como viera ter ali. O rapaz foi andando e perguntou por quem eram aqueles grandes prantos.
- É porque a filha do rei foi roubada por um gigante que vive em uma ilha aonde ninguém pode chegar.
-Pois eu sou capaz de ir lá.
Foram dizê-lo ao rei; o rei obrigou-o com pena de morte a cumprir o que dissera. O rapaz valeu-se do cavalo branco, e conseguiu ir à ilha trazendo de lá a princesa, porque apanhara o gigante dormindo.
A princesa assim que chegou ao palácio não parava de chorar. Perguntou-lhe o rei:
- Porque choras tanto, minha filha?
- Choro porque perdi o meu anel que me tinha dado a fada minha madrinha e, enquanto o não tornar a achar, estou sujeita a ser roubada outra vez ou ficar para sempre encantada.
O rei mandou lançar o pregão em como dava a mão da princesa a quem achasse o anel que ela tinha perdido. O rapaz chamou o cavalo branco, que lhe trouxe do fundo do mar o anel, mas o rei não lhe queria já dar a mão da princesa; porém ela é que declarou que casaria com o jovem para que dissessem sempre: Palavra de rei não torna atrás.

Teófilo Braga, Contos Tradicionais do Povo Português

domingo, 6 de abril de 2008

O CALDO DE PEDRA

Um frade andava ao peditório; chegou à porta de um lavrador, mas não lhe quiseram aí dar nada. O frade estava a cair com fome, e disse:
- Vou ver se faço um caldinho de pedra. E pegou numa pedra do chão, sacudiu-lhe a terra e pôs-se a olhar para ela para ver se era boa para fazer um caldo. A gente da casa pôs-se a rir do frade e daquela lembrança. Diz o frade:
- Então nunca comeram caldo de pedra? Só lhes digo que é uma coisa muito boa.
Responderam-lhe:
- Sempre queremos ver isso.
Foi o que o frade quis ouvir. Depois de ter lavado a pedra, disse:
- Se me emprestassem aí um pucarinho.
Deram-lhe uma panela de barro. Ele encheu-a de água e deitou-lhe a pedra dentro.
- Agora se me deixassem estar a panelinha aí ao pé das brasas.
Deixaram. Assim que a panela começou a chiar, disse ele:
- Com um bocadinho de unto é que o caldo ficava de primor.
Foram-lhe buscar um pedaço de unto. Ferveu, ferveu, e a gente da casa pasmada para o que via. Diz o frade, provando o caldo:
- Está um bocadinho insosso; bem precisa de uma pedrinha de sal.
Também lhe deram o sal. Temperou, provou, e disse:
-Agora é que com uns olhinhos de couve ficava que os anjos o comeriam.
A dona da casa foi à horta e trouxe-lhe duas couves tenras. O frade limpou-as, e ripou-as com os dedos deitando as folhas na panela.
Quando os olhos já estavam aferventados disse o frade:
- Ai, um naquinho de chouriço é que lhe dava uma graça...
Trouxeram-lhe um pedaço de chouriço; ele botou-o à panela, e enquanto se cozia, tirou do alforge pão, e arranjou-se para comer com vagar. O caldo cheirava que era um regalo. Comeu e lambeu o beiço; depois de despejada a panela ficou a pedra no fundo; a gente da casa, que estava com os olhos nele, perguntou-lhe:
- Ó senhor frade, então a pedra?
Respondeu o frade:
- A pedra lavo-a e levo-a comigo para outra vez.
E assim comeu onde não lhe queriam dar nada.

Teófilo Braga, Contos Tradicionais do Povo Português

sábado, 5 de abril de 2008

O SARGENTO QUE FOI AO INFERNO

Havia numa terra um sargento, que era muito bom rapaz; um rico mercador tomou-lhe amizade, arranjou-lhe a baixa e tomou-o para seu empregado. Como o mercador tinha filhas, o sargento apaixonou-se por uma delas: ora o mercador era muito desconfiado e nunca deixava sair as filhas de casa, mas pela grande conta em que tinha o rapaz ele mesmo lhe falou para se fazer o casamento. Tudo corria muito bem; vai, acontece ir uma peça muito linda no teatro, e como as filhas desejassem ver, pediram ao sargento, que só ele é que era capaz de apanhar licença do pai para as deixar ir ver. O mercador ficou carrancudo, mas deu licença, dizendo:
- Deixo ir as minhas filhas com o senhor, e é com a condição, que quando der a última badalada da meia-noite hão-de estar aqui à porta.
Disseram todos que sim, e partiram.
Quase perto da meia-noite, o rapaz disse para a sua noiva, que era bom retirarem-se para casa. Mais um bocadinho, mais um bocadinho; pede daqui, pede dali, o certo é que já tinha dado a meia-noite, eles ainda longe de casa.
Assim que o rapaz bateu à porta, abriu-se logo de repente, e o mercador começou a bradar:
-Foi assim que o senhor cumpriu as ordens que eu lhe dei? Pois trate já de arranjar as suas coisas que nem já esta noite me fica em casa.
- Oh senhor, então só por isto! E quando estava já para casar com sua filha!
O velho respondeu-lhe:
- Só tem um meio de poder casar com minha filha, e voltar para casa.
- Qual?
-Vá ao Inferno, e traga-me três anéis que o Diabo tem no corpo, dois debaixo dos braços, e outro num olho.
O rapaz achou aquilo impossível; mas que remédio teve senão pôr-se a caminho. Na primeira terra a que chegou, pregou um edital em que dizia: "Quem quiser alguma coisa para o Inferno, amanhã parte um mensageiro." Isto causou grande curiosidade, até que chegou aos ouvidos do rei, que mandou chamar o rapaz. Perguntou-lhe o rei:
- Como é que você vai ao Inferno?
- Real senhor, por ora ainda não sei; ando em procura dele, e irei lá, dê por onde der.
- Pois bem, disse o rei, quando encontrares o Diabo, pergunta-lhe se ele sabe de um anel de muito valor que eu perdi, do que ainda tenho grande desgosto.
Chegou o rapaz a outra terra e botou o mesmo anúncio. O rei também o mandou chamar:
- Tenho uma filha que padece uma doença muito grande, e ninguém lhe acerta com o mal. Já que vais ao Inferno quero que saibas por lá onde é que estará a cura.
O rapaz partiu sempre à procura do Inferno, e foi dar a uma encruzilhada em que estavam dois caminhos, um com pegadas de gente, e o outro com pegadas de ovelhas. Pensou, e por fim seguiu pelo caminho das pegadas de gente; ao meio dele encontrou um ermitão, de barbas brancas, que rezava em umas camândulas muito grandes, e lhe disse:
- Ainda bem que tomaste por este caminho, porque esse outro é o que vai para o Inferno.
- Oh, senhor! E eu há tanto tempo que ando à procura dele!
O rapaz contou-lhe todo o acontecido; o ermitão teve compaixão dele, e disse:
-Já que tens de ir ao Inferno, vai, mas sempre leva contigo estas contas, porque antes de lá chegar tens de passar um rio escuro, e há-de ser um pássaro que te há-de levar para o outro lado; e quando ele te quiser afundar no rio, joga-lhe as contas ao pescoço. Daqui em diante não sei mais o que te sucederá.
Assim aconteceu. Chegado ao Inferno o rapaz teve um grande medo, e viu para ali um forno vazio e escondeu-se dentro dele. Quando estava todo agachado, passou uma velha muito velha e viu-o.
- O menino aqui! Ora coitadinho, que é tão lindo; se o meu filho o visse matava-o, com certeza. O que veio cá fazer?
O rapaz contou tudo à mãe do Diabo; a velha teve pena dele, e disse-lhe:
- Olhe; pois deixe-se ficar aqui escondido, porque eu não sei quando o meu filho virá; ele está assistindo à morte do Padre Santo, que está nas agonias, e quer-lhe apanhar a alma. O rapaz pediu à velha se sabia do Diabo as perguntas de que trazia encomenda. Quando estavam nestas conversas chegou o Diabo bufando; a velha escondeu-o logo, e disse:
- Anda cá, filho, para descansares; deita-te aqui no meu colo.
O Diabo deitou-se e ficou logo a dormir. A velha foi muito devagarinho com as unhas e arrancou-lhe um anel que tinha debaixo do braço. O Diabo mexeu-se desesperado, gritando:
- Isto o que é?
-Ai, filho, fui eu que me deixei dormir, e dei uma pendedela em cima de ti. Estava a sonhar com aquele rei que perdeu o anel, e que nunca mais o tornou a achar.
- Pois é verdade esse sonho, respondeu o Diabo; está debaixo de uma laje ao pé do repuxo do jardim.
O Diabo tornou a ficar a dormir; a velha sorrateira arrancou-lhe o segundo anel. O Diabo tornou a acordar desesperado:
_ Tem paciência, filho; tornei-me a deixar dormir e a sonhar com a filha daquele rei que nenhum médico sabe curar.
- Também é verdade; a doença dela é o sapo-sapão, que está metido no enxergão.
Tornou o Diabo a dormir. Para arrancar o anel do olho é que foram os trabalhos.
A velha tirou-o com um espéculo, e o diabo com a dor e zangado com as pendedelas, saiu pela porta fora. O rapaz recebeu tudo da velha; voltou para o mundo, quando ela chamou o pássaro: "Menino, menino, menino." Foi dali entregar as contas ao ermitão. Depois passou pela terra do rei que tinha perdido o anel, que lhe deu muito dinheiro quando o tornou a achar debaixo da laje. Depois passou pela corte do rei que tinha a filha doente, disse onde estava o sapo-sapão. A princesa melhorou logo, e o rei pediu-lhe para que dissesse a paga que queria.
- Quero que Vossa Majestade me dê o seu poder por oito dias.
O rei mandou deitar um pregão para ele governar oito dias; o rapaz partiu logo para a terra do sogro, e deu ordem logo que lá chegou para o mercador dentro em meia hora lhe vir falar à sua presença. O mercador foi, mas quando chegou era já mais de uma hora. O rapaz disse:
- Podia-o mandar matar, por me ter desobedecido, em vir depois da meia hora.
- Oh senhor, não me demorei por minha vontade.
- Pois sim. Mas porque não soube em tempo desculpar aquele pobre sargento que pôs fora de sua casa?
O mercador conheceu então o antigo noivo de sua filha, que tinha sempre chorado, confessou o seu erro, e pediu-lhe de joelhos muitos perdões. O rapaz entregou-lhe os anéis do Diabo, e nesse mesmo dia casou com a sua namorada, por quem tinha metido um pé no Inferno.


Teófilo Braga, Contos Tradicionais do Povo Português

quinta-feira, 3 de abril de 2008

D. Caio

Era um alfaiate muito poltrão, que estava trabalhando à porta da rua; como ele tinha medo de tudo, o seu gosto era fingir-se de valente. Vai de uma vez viu muitas moscas juntas e de uma pancada matou sete. Daí em diante não fazia senão gabar-se:
- Eu cá mato sete de uma vez!
Ora o rei andava muito aparvalhado, porque lhe tinha morrido na guerra o seu general Dom Caio, que era o maior valente que havia, e as tropas do inimigo já vinham contra ele, porque sabiam que não tinha quem mandasse a combatê-las. Os que ouviram o alfaiate andar a dizer por toda a parte: “Eu cá mato sete de uma vez!” foram logo metê-lo no bico do rei, que se lembrou de que quem era tão valente seria capaz de ocupar o posto de Dom Caio.
Veio o alfaiate à presença do rei que lhe perguntou:
- É verdade que matas sete de uma vez?
- Saberá Vossa Majestade que sim.
- Então nesse caso vais comandar as minhas tropas e atacar os inimigos que me estão cercando.
Mandou vir o fardamento de dom Caio e fê-lo vestir ao alfaiate, que era muito baixinho, e que ficou com o chapéu de bicos enterrado até às orelhas; depois disse que trouxessem o cavalo branco de Dom Caio para o alfaiate montar. Ajudaram-no a subir para o cavalo, e ele já estava a tremer como varas verdes; assim que o cavalo sentiu as esporas botou à desfilada, e o alfaiate a gritar:
- Eu caio, eu caio!
Todos os que o ouviam por onde passava diziam:
- Ele agora diz que é o Dom Caio; já temos homem.
O cavalo, que andava acostumado às escaramuças, correu para o sítio em que se combatia, e o alfaiate com medo de cair ia agarrado às crinas, a gritar como um desesperado:
- Eu caio, eu caio!
O inimigo, assim que viu o cavalo branco do general valente e ouviu o grito: “Eu caio, eu caio!”, conheceu o perigo em que estava, e disseram os soldados uns para os outros:
- Estamos perdidos, que lá vem o Dom Caio; lá vem o Dom Caio!
E botaram a fugir à debandada; os soldados do rei foram-lhes no encalço e mataram-nos, e o alfaiate ganhou assim a batalha só em agarrar-se ao pescoço do cavalo e em gritar: “Eu caio”.
O rei ficou muito contente com ele e, em paga da vitória, deu-lhe a princesa em casamento, e ninguém fazia senão louvar o sucessor de Dom Caio pela sua coragem.

Teófilo Braga, Contos Tradicionais do Povo Português, Dom Quixote

quarta-feira, 2 de abril de 2008

O SAL E A ÁGUA

Um rei tinha três filhas; perguntou a cada uma delas por sua vez, qual era a mais sua amiga. A mais velha respondeu:
- Quero mais a meu pai, do que à luz do Sol.
Respondeu a do meio:
- Gosto mais de meu pai do que de mim mesma.
A mais moça respondeu:
- Quero-lhe tanto, como a comida quer o sal.
O rei entendeu por isto que a filha mais nova o não amava tanto como as outras, e pô-la fora do palácio. Ela foi muito triste por esse mundo, e chegou ao palácio de um rei, e aí se ofereceu para ser cozinheira. Um dia veio à mesa um pastel muito bem feito, e o rei ao parti-lo achou dentro um anel muito pequeno, e de grande preço. Perguntou a todas as damas da corte de quem seria aquele anel. Todas quiseram ver se o anel lhes servia: foi passando, até que foi chamada a cozinheira, e só a ela é que o anel servia. O príncipe viu isto e ficou logo apaixonado por ela, pensando que era de família de nobreza.
Começou então a espreitá-la, porque ela só cozinhava às escondidas, e viu-a vestida com trajos de princesa. Foi chamar o rei seu pai e ambos viram o caso. O rei deu licença ao filho para casar com ela, mas a menina tirou por condição que queria cozinhar pela sua mão o jantar do dia da boda. Para as festas de noivado convidou-se o rei que tinha três filhas, e que pusera fora de casa a mais nova. A princesa cozinhou o jantar, mas nos manjares que haviam de ser postos ao rei seu pai não botou sal de propósito. Todos comiam com vontade, mas só o rei convidado é que não comia. Por fim perguntou-lhe o dono da casa, porque é que o rei não comia? Respondeu ele, não sabendo que assistia ao casamento da filha:
- É porque a comida não tem sal.
O pai do noivo fingiu-se raivoso, e mandou que a cozinheira viesse ali dizer porque é que não tinha botado sal na comida. Veio então a menina vestida de princesa, mas assim que o pai a viu, conheceu-a logo, e confessou ali a sua culpa, por não ter percebido quanto era amado por sua filha, que lhe tinha dito, que lhe queria tanto como a comida quer o sal, e que depois de sofrer tanto nunca se queixara da injustiça de seu pai.

Teófilo Braga,Contos Tradicionais do Povo Português

terça-feira, 1 de abril de 2008

Os alunos do Clube de Leitura recomendam...

Nós somos o João Duarte, o Luís Caetano e a Maria João e somos membros do Clube de Leitura. Na sessão de hoje, lemos as obras:


- "A noite dos animais inventados" de David Machado;


- "Tudo ao contrário!" de Luísa Ducla Soares;


- "Ler, ouvir e contar" de António Torrado.

No final da sessão, demos a nossa opinião sobre as três obras e, apesar de termos gostado de todas, recomendamos como leitura da semana "Tudo ao contrário!" de Luísa Ducla Soares.



Este livro tem quatro histórias "O homem alto, a mulher baixinha", "O rapaz magro, A rapariga gorda", "A rapariga limpa, o rapaz sujo" e "A menina branca, o rapaz preto"





Aqui fica a história que mais gostámos:

O homem alto, a mulher baixinha

Era uma vez um homem tão alto, tão alto, tão alto, que batia com a cabeça nas nuvens. Por isso ninguém sabia se ele usava chapéu.
Era uma vez uma mulher tão baixa, tão baixa, tão baixa, que usava os malmequeres como chapéus-de-sol.
O homem alto tinha um animal de estimação. Que seria? Uma girafa!
A mulher baixa também tinha o seu animal de estimação. Adivinham qual? Uma formiga!
O homem alto via-se aflito para arranjar um fato. Gastava 100 metros de tecido.
Além disso, nem todos os alfaiates gostavam de tirar medidas e de provar, pendurados num guindaste.
A mulher baixinha não tinha problemas para vestir bem por pouco dinheiro. Comprava roupas feitas nas lojas de bonecas.
O homem alto tinha de entrar de rastos no túnel onde dormia.
Nunca teria dinheiro para comprar um arranha-céus onde coubesse, ao menos sentado.
A mulher baixinha tinha de usar um escadote para subir o único degrau do rés-do-chão em que morava.
O homem alto era um grande polícia sinaleiro. Mas só de aviões.
A mulher baixinha era uma grande médica. Mas só tratava doenças dos pés.
Um dia a mulher baixinha foi chamada para ver uns pés que pertenciam a um corpo que nunca mais acabava.
O doente ficou espantado com aquela médica, que mal chegava à altura de um sapato. Pediu-lhes licença para a erguer no ar.
Então, frente a frente, sorriram ao repararem como eram tão parecidos - tinham ambos cabelos ruivos, olhos verdes, três sardas na ponta do nariz.