domingo, 29 de junho de 2008

Mais um ano lectivo que terminou.
Chegaram as merecidas férias.
Aproveitem bem para descansar e divertirem-se com os vossos amigos, mas não se esqueçam que um bom livro também é um amigo.
Nós, em Setembro, voltaremos.
Boas férias e boas leituras!!!

Recados Para Orkut

segunda-feira, 16 de junho de 2008

As Viagens de Gulliver-Visita do imperador.

NÃO tive tempo para dormir muito. 0 Imperador vinha visitar-me. Pus-me de pé e olhei em volta. Que espectáculo admirável! A cidade surgia toda a meus olhos, com suas casas de boneca, os campos que a rodeavam, bem cultivados e de variegadas cores, mas não maiores do que pequenos canteiros de jardim. As árvores não subiam além, as mais altas, dum metro de altura. A chegada do Imperador foi anunciada por clangoroso soar de charamelas. Lá vinha o Imperador, imponente em sua breve estatura, acompanhado da sua corte. Sua Majestade montava imponente e magnificamente ajaezado cavalinho, circunstância que ia provocando terrível desastre. Com efeito, o ginete, embora muito bem adextrado, assustou-se ao avistar-me. Ao que suponho, julgou encontrar-se em frente de grande montanha, e deu um violento salto para o lado. 0 Imperador conseguiu manter-se firme no selim e nos estribos, até que vários pajens viessem segurar as rédeas. Então eu deitei-me outra vez, e para que o rosto me ficasse mais perto do soberano e a seu nível, encostei-me ao cotovelo, e quedei-me respeitosamente. Só o Imperador avançou. A Imperatriz, os príncipes e princesas, acompanhadas de muitas aias, sentaram-se em cómodas poltronas a alguma distância.

Como vinha ricamente vestido o Soberano! Na sua pequenez, deslumbrava. Era um pouco maior do que os súbditos, mais ou menos a diferença do tamanho da unha do meu dedo mendinho. Fisionomia simpática e até bela, aspecto realmente majestoso. Bem proporcionado, elegante, de movimentos graciosos, e de porte cheio de dignidade. Na cabeça, um leve capacete ou elmo de oiro, adornado de pedras preciosas, e com um vistoso penacho ao alto. Na mão, a espada desembainhada, refulgindo. Voz clara e aguda, que se ouvia claramente, que mesmo estando eu de pé ouvia muito bem. A seu lado, segundo o que me foi possível conjecturar pelos trajos, estava um grupo de sábios. Ordenou-lhes que me dirigissem a palavra. Falei também, em todas as línguas que sabia. Mas foi em vão. Não conseguimos, porém, compreender-nos uns aos outros. Disse-lhes o meu desejo de ficar em liberdade. A resposta foi: "Lumos Kelmin pesso desmar", cujo sentido depois soube ser que eu deveria primeiro garantir que firmaria um tratado de perpétua paz com o seu povo. No entretanto, rogava-me que usasse de bondade e de paciência para com este, para assim convencer todos das minhas generosas intenções. Fez ainda revistar os meus bolsos, não escondesse eu qualquer objecto perigoso, arma ou outra coisa, e, depois de duas horas da nossa difícil conversa por meio de muitos gestos e poucas palavras, retirou-se Sua Majestade, seguida pela corte.
Não fiquei sozinho, porém. Um certo número de soldados ficou a guardar-me de possíveis excessos de curiosidade da multidão, que não cessava de acotovelar-se quase à beira do meu corpo, já então deitado ao comprido, e de o contemplar e querer tocar, maravilhada. Não se evitou, apesar das precauções ordenadas pelo Imperador, que uns rapazolas resolvessem experimentar a sua pontaria, atirando as setas aguçadas dos arcos que manejavam com muita habilidade contra os meus olhos. Quase
me cegavam do olho esquerdo. 0 capitão dos guardas prendeu-os, amarrou-os e entregou-mos. Meti-os no bolso para os castigar. Arrepelavam-se e choravam, cheios de medo. Julgavam, certamente que eu os mataria. Mas soltei-os pouco depois. 0 povo apreciou grandemente a minha clemência, e deu-me palmas. Conquistava simpatias gerais momento a momento. Antes assim!
A noite desceu, no entretanto, e eu sentia-me muito precisado de dormir. Entre - mas que dificuldade! - na minha casa, e deitei-me no chão, na terra dura, que nem estrado havia para melhor conforto. 0 Imperador, verdade seja, mandara construir uma boa cama para mim. Mas levou tempo a fazê-la. 0 colchão sobretudo, cujas dimensões pareciam gigantescas àquela raça tão miudinha. Foi necessário coser uns aos outros cento e cinquenta colchões dos Lilipucianos para obter a largura e o comprimento do que seria o meu. Quanto à altura, quatro camadas dos mais cheios possível. Mesmo assim, a cama não me dava grande conforto. Era
muito pouco fofa. Que remédio! Tive de contentar-me.
Durante esses dias de trabalho a meu favor, a Soberana Majestade reuniu várias vezes o Conselho de Ministros para resolver definitivamente o meu destino. Havia, pelo que mais tarde me revelaram, pânico, e receio de que eu viesse a quebrar os fios que me envolviam - (e que faria eu, depois? perguntavam, assustados) ou que faltasse comida para me alimentar, ou que, não faltando para mim, faltasse para os Lilipucianos, vítimas então da fome geral. Um dos Ministros chegou a propor que, nesse caso, me deixassem morrer à míngua de alimentos. Lembravam-se outros, porém, que a decomposição dum cadáver colossal como seria o meu, poderia trazer o risco de terrível e grande peste, não apenas na capital, mas em todo o reino. Valeu-me a lembrança da generosidade de que eu tinha usado para os jovens archeiros brincalhões. Decidiu-se então que uma Delegação Imperial percorresse o país e obrigasse os habitantes das aldeias mais próximas da capital a fornecer todas as manhãs seis bois (eram do tamanho de ratos, como já disse atrás) quatro carneiros, e outros víveres, além duma quantidade proporcional de pão e de vinho. Seiscentos funcionários foram nomeados para me servir, todos eles recebendo pingues ordenados. Habitavam tendas e barracas, de propósito construídas de cada um dos lados da porta da minha casa. Ao mesmo tempo, trezentos alfaiates foram encarregues de me talhar e coser um belo fato completo à moda do país. 0 mais importante, porém, foi a escolha de seis professores de nomeada, dos mais sábios do Império, que deveriam, em prazo breve, ensinar-me a falar e a escrever lilipuciano. Por fim, uma última decisão: - os cavalos do Imperador e da corte seriam trazidos muitas vezes ali, para se acostumarem a ver-me, e não tomarem o freio nos dentes ao chegar junto de mim, montados pelos respectivos donos. Todos estes decretos e ordens foram pontualmente e cabalmente executados. Logo que aprendi algumas palavras e frases da
língua dos meus forcados hospedeiros, tratei de suplicar o Imperador que me desse a liberdade pela qual tanto ansiava. A resposta entristeceu-me, embora mais ou menos não esperasse outra: - Sua Majestade reclamava garantias do meu bom comportamento, antes de me mandar soltar. Garantias para ele e para o seu povo, que só o tempo lhe daria. Desde logo, porém, cumpria-me jurar, pela minha honra, que viveria em paz e em bom entendimento com todos quantos me rodeavam, promessa, que não me custou nada a fazer, pois a minha índole e o meu carácter não são de molde a criar conflitos. Nasci com bom feitio, sou amante da concórdia, e, não havia o menor motivo para modificar a natural doçura do meu temperamento.
Também me pediram licença para efectuar rigorosa busca nos meus bolsos, e em toda a minha pessoa, de modo a tirar-me as armas ou quaisquer objectos desconhecidos que tivesse trazido comigo. Nem protestei. Aceitei gostosamente a ideia, e procurei facilitar a tarefa aos dois funcionários que a
realizaram. Agarrei neles com toda a minha delicadeza, e pu-los nos bolsos do meu casaco, e depois nos outros bolsos, cruzei os braços e fiquei muito quieto. Munidos de rolo de papel, de caneta e tinteiro, os Lilipucianos vasculharam as minhas algibeiras, só se atrapalhando quando se perdiam nos pequenos para eles grandes - rolos de cotão que nunca faltam nos bolsos dos fatos. Escreveram em seguida a lista dos objectos encontrados, cujo inventário mais tarde traduzi e aqui registo e copio:

"Primeiro, no bolso direito do gibão justo ao corpo do "homem-montanha" só encontramos um pedaço de tela grosseira, bastante grande para servir de tapete na sala de trono de Vossa Majestade. No bolso esquerdo, há um grande cofre de prata com tampa do mesmo metal e tão pesado que tivemos de pedir ao homem-montanha que o levantasse. 0 que ele fez de boa vontade. Entrámos dentro do cofre, mas, então, enterrámo-nos até aos joelhos num pó finíssimo, cor de castanha, que se espalhou na atmosfera e nos fez espirrar muitas vezes. Na algibeira do casaco de fora, encontrámos um enorme pacote de substâncias brancas e delgadinhas, dobradas umas sobre as outras, talvez da grossura de três homens, e marcadas por grandes desenhos negros que julgamos ser qualquer escrito, cujas letras atingem o tamanho de metade da palma da nossa mão.
Na algibeira esquerda do mesmo casaco, surgiu-nos uma espécie de máquina armada de vinte compridíssimos dentes, semelhante às palissadas que rodeiam e encerram o Palácio de Vossa Majestade, supondo nós que tal objecto o empregava o homem-montanha para se pentear. No imenso bolso do lado direito do seu "tapa-o-meio-do corpo" (os meus calções) vimos um pilar de ferro oco, ligado a um pedaço de madeira trabalhada; da banda do pilar, há outras pegas de ferro, em relevo, de forma muito esquisita. A tudo isto, o homem-montanha chamou a sua "pistola". Outro utensílio ou objecto igual encontrámos no bolso esquerdo. Num bolso pequeno - rodelas chatas de metal amarelo e branco, algumas tão pesadas que nos custou, a mim e ao meu camarada, a erguê-las para as contar. Pendente da algibeira que o homem-montanha chama "bolsinho" (!!!) do colete, uma corrente de prata, à qual estava presa uma máquina ainda mais maravilhosa de que a citada atrás. Parecia um globo achatado. Metade era prata, outra metade coberta de vidro. Por debaixo do vidro, lobrigámos figuras estranhas tragadas circularmente, mas em que nós não conseguimos tocar, por estarem defendidas pelo que imaginamos ser metal transparente. 0 homem-montanha encostou a tal máquina aos nossos ouvidos. Que barulho! Dir-se-ia um moinho movido a água. Pensamos que, ou é algum animal desconhecido e domesticado, ou então, a divindade que ele adora. Cremos que deverá ser uma divindade, porque ele nos asseverou nunca fazer a menor cousa sem a ter consultado. Apelidou-se de "oráculo", e afirmou que marcava o tempo pelo que media todas as acções da sua vida!
" Cumprimos, pois, desta maneira, as ordens de Vossa Majestade. Pesquisámos em todos os bolsos do homem-montanha e registámos tudo o que havia ali. Por fora do seu enorme corpo observámos um cinto feito da pele de qualquer animal fabuloso, do qual pendia uma espada do comprimento de oito dos vassalos de Vossa Majestade. Do outro, uma bolsa onde caberão seis homens. Continha globos dum metal muito pesado, mais ou menos do tamanho das nossas cabeças.
"Eis o inventário exacto das diversas cousas pertencentes ao homem-montanha, que, note-se, nos tratou e recebeu com a máxima civilidade e muito nos auxiliou.
"Assinado e selado no quarto dia da octogésima nona lua do feliz reinado de Vossa Majestade.
"
Depois de ler o inventário, ordenou-me o Imperador que lhe entregasse todos os objectos que nele vinham mencionados. Obedeci-lhe sem demora. Separei a espada, com a bainha, do cinto, e atirei-a a um metro de distância. Em seguida, agarrei as pistolas, carreguei-as só de pólvora, preveni o Imperador que não se assustasse e dei dois tiros para o ar. A minha prevenção não foi inútil. A detonação surpreendeu de tal modo que os Lilipucianos que estavam perto e a própria Majestade caíram uns em cima dos outros, como se um raio os tivesse atingido. 0 Imperador, apesar de ser valente, só voltou a si passados alguns minutos.

Atrelaram uns poucos de cavalos a esses objectos e transportaram-nos a um edifício bastante afastado. 0 susto que o Imperador apanhara, incitara-o a ser prudente. Entreguei também o relógio. 0 ruído da máquina e o movimento rápido e incessante dos ponteiros, deslumbraram a corte. 0 Imperador desejava examinar de perto tão grande maravilha. Mandou-a levar ao palácio. Para transportar tamanho peso, dois dos guardas mais fortes enfiaram-lhe a argola num pau, e, cada um apoiando ao ombro as extremidades destes, lá foram com ele. Dei ainda o meu dinheiro, o meu pente, a minha tabaqueira de prata, o meu lenço e o caderno do meu diário. Sua Majestade quis saber para que servia tudo aquilo. Expliquei. Mandou que pusessem rótulos designativos e que os guardassem com o seu tesouro particular. Guardei apenas num bolso interior que não fora pesquisado, os meus óculos (sou fraco de vista), um pequeno telescópio, e outras ninharias que, receando que mas perdessem, preferi guardar.

Jonathan Swift, As Viagens de Gulliver, Livraria Sá da Costa

segunda-feira, 9 de junho de 2008

As Viagens de Gulliver- NAUFRÁGIO E CHEGADA A LILIPUCIA

TIVE uma infância feliz, embora minha família não fosse de gente rica e houvesse cinco filhos em casa. Eu era o terceiro. Meu Pai mandou-me estudar para o Colégio Emanuel, em Cambridge, na idade dos catorze anos. Ali fiquei três anos, e fui aluno aplicado. Mas, como o encargo de pagar o Colégio se tornou excessivo para as posses de meu Pai, entrei como aprendiz no consultório do Dr. James Bates, cirurgião eminente de Londres. Quatro anos ali trabalhei. Depois, resolvido a ser médico de marinha, aprendi a arte da navegação, pois sempre pensei ser esse estudo o mais conveniente para o meu inato desejo de percorrer e conhecer o mundo. Realizei algumas travessias. Ainda voltei a praticar, porém, com o Dr. Bates. Ele morreu. No intervalo, tinha eu casado. Precisava ganhar a vida. Consultei minha mulher e resolvi fazer-me outra vez ao mar, na mesma qualidade de médico. Parti de Brístol em 4 de Maio de 1699, no navio veleiro «Antílope», comandado pelo Capitão Guilherme Richard. A travessia iniciou-se nas melhores condições. Tudo corria bem. Mas em seguida, começou a minha primeira e grande aventura.
Não entrarei em pormenores excessivos para não fatigar o leitor, agora que vou começar a narrativa de extraordinárias e imprevistas aventuras. Basta informá-lo de que, na viagem para as índias Orientais violentíssima tempestade impeliu o navio para noroeste da Terra de Van Diemen. Encontrámo-nos então, segundo o que observámos, na latitude de 30 graus e 2minutos. Doze dos nossos tripulantes, por excesso de trabalho e falta de alimento, tinham morrido. O resto ficou em péssimas condições. O barco bateu num rochedo e naufragou, por fim. Metemo-nos seis num bote, e remámos corajosamente umas três léguas, para alcançar terra. Não o conseguimos. O cansaço, a fome, e as ondas encarregaram-se da triste tarefa de levar os meus companheiros. Eu, remando e depois nadando, a tudo escapei, nem sei como. Alcancei com dificuldade imensa uma praia de suave declive. Mergulhado na água até aos joelhos andei então perto de duas léguas e cheguei à terra firme. Não vi ninguém, nem sinal sequer de qualquer habitação. Tudo deserto. Marginando a praia um campo de verde relva, apenas. Cansadíssimo, extenuado, deitei-me na relva macia e adormeci. A noite vinha descendo e eu não tinha energia para caminhar mais. Longas horas dormi, sossegadamente. Já o Sol estava alto quando acordei, e a sua claridade intensa quase me ofuscou a vista. Disse de mim para mim: - «Vou-me levantar e procurar de comer, à sombra da primeira árvore que me apareça». Era o melhor que podia fazer ... Simplesmente, ao tentar erguer-me, não o consegui. Estava preso pelos cabelos, que nesse tempo se usavam muito compridos, e o resto do corpo enredado num sem número de cordelinhos delgados, mas fortíssimos, que me tolhiam os movimentos. Pernas e braços, mãos e pés, senti-os fixados ao solo. Retesei os músculos, respirei fundo, quis sacudir aquelas apertadas malhas - e nada! Os cordéis entravam-me na pele e feriam-me. Que aflição! Por não me ser possível fazer outra cousa, voltei a estar quieto. Uma espécie de comichão ou prurido, como que provocado pela marcha de formiga ou de mosca, incomodou-me então. De súbito, surgiu a meus olhos espantados uma criaturinha minúscula, um homenzinho da altura aí duns cinco centímetros - imagine-se! - mas bem proporcionado e todo esperto. 0 uniforme e as armas que ostentava convenceram-me que se tratava de um militar, de um soldado ou, talvez, de um oficial. E mais havia, decerto, à minha volta, pois um ruído confuso, de passos e de exclamações, me chegava aos ouvidos. Assustei-me, confesso, e gritei involuntariamente. Mas a plena voz. Os sujeitinhos retiravam-se em pânico. E até alguns se feriram, caindo de cima do meu corpo, na precipitação da fuga. Como não me demorei a calar-me, voltaram, porém. Já eu conseguira libertar-me um pouco dos fios que me prendiam cabelos, cabeça, mãos e artelhos. Pude olhar um pouco para o lado. Ao dar por isto, as tais criaturinhas fugiram outra vez, soltando gritinhos de medo. Fugiram e emudeceram logo em seguida. Um deles exclamou, num brado de comando, "Tolgo fonac!" "Tolgo fonac!" - Que língua estranha, pensei. 0 pior é que mais de cem flechas - flechas que se diriam alfinetes ou agulhas - me pisavam uma das mãos, cujos dedos já se moviam, embora, vagarosa e dificilmente. Experimentei mexer-me mais. Nova descarga de flechas caiu. Algumas feriram-me o rosto. E os homens pequeninos atacavam-me então com agudas lanças. 0 que me valeu foi eu trazer o meu casaco de pele de búfalo, resistente a todos os golpes. Se não fosse essa circunstância, não escaparia às consequências do ataque. "Quieto! Quieto!" aconselhei-me a mim próprio. E quieto permaneci, esperando a noite. Confiava que, a favor da escuridão, e convencido de que não haveria ali habitantes de maior estatura, conseguiria libertar-me de vez das malhas da espécie de rede que me prendia. Iludia-me! Estava-me reservada outra sorte ... Os meus assaltantes não descansavam. As frechadas acabavam, o ataque cessou. Mas incessantes pancadas de martelinhos de pau - cujo barulho muito bem ouvia - avisavam-me da construção de qualquer cousa do lado do meu ouvido esquerdo. Assim era. Voltei ligeiramente a cabeça tanto quanto mo permitiam os cordéis que me seguravam os cabelos e a cabeça - e o que vi? Vi - surpreendidíssimo - que estavam a levantar um estrado aí de uns vinte centímetros, até à sua plataforma. Nem mais, nem menos. Queriam conversar comigo! Quatro dos homenzitos, de facto, um à frente, os outros como que formando séquito ou escolta, saltou para o meu peito e discursou. Pareceu-me eloquente, e que, nas suas palavras, havia ora ameaça ora bondade e compaixão. Abandonei-me à esperança da bondade possível. E não me arrependi, nem me arrependo ainda hoje. Respondi em meia dúzia, não de frases (que eles não entenderiam) mas de sinais. E, como a fome apertava, busquei que esses sinais revelassem a minha submissão e a minha urgente necessidade de alimentos. 0 comandante da escolta, o "Hurgo", - que era o nome que lhe davam - compreendeu-me muito bem. Desceu sem demora do frágil estrado e ordenou que trouxessem muitas escadas de mão. Colocaram-nas aos meus lados, contra o meu corpo. Cem criaturinhas diligentes e curiosas caminharam para a minha boca. Transportavam cestos de carne muito bem preparada de diferentes animais. (Mas que animais? Não adivinhei quais fossem). Eram pernas, e outras partes do corpo desses bichos. Qualquer delas, todavia, não excedia o tamanho de asas de cotovia. De uma só vez, engoli bastantes de tais iguarias, acompanhando-as de seis pães! Os meus ofertantes ficavam maravilhados ... Sentia sede, também, Lá me fiz entender por novos sinais. Abriram alguns tonéis de vinho e despejavam-nos na boca. Cada um não seria maior do que um copito dos nossos. Bebi avidamente. Pedi mais. À forca de gesticulação vária explicavam-me que não havia. Paciência! Já estava um pouquito mais reconfortado. Reconfortava-me também a ideia de que não tinha abordado em terra de selvagens ou de gente má. Enquanto eu comia, esfregavam-me a cara e as mãos com um certo unguento, de cheiro muito agradável e rapidamente curativo das alfinetadas - alfinetadas para mim, para eles terríveis frechadas - que eu recebera. Decerto a minha fisionomia denunciou naquele momento satisfação patente. Os homenzitos gostaram de me ver assim, e a minha alegria comunicou-se-lhes. Começaram a dançar sobre o meu peito - quase nem me pesavam! . . . - repetindo volta e meia "Hekinah degul", palavras de que mais tarde soube o sentido e que exprimiam, claro está, agrado e contentamento. Indicaram-me então que deitasse fora os dois tonéis despejados. Impeli-os. Rolaram e caíram. Afastados da passagem, - aos gritos de "Borach Mivola" - para não serem feridos, mal os avistaram no chão atiravam ao ar um "hurrah!" de entusiasmo, bradando de modo "Hekinah Degul".Vi então chegar junto de mim, mais exactamente em cima de mim, uma multidão imensa daqueles pequenos e nojentos seres. Compunha-se de um verdadeiro exército, com seus generais, coronéis e capitães, de membros do clero, da magistratura e da nobreza, de burgueses, de operários, de artífices, e mesmo de camponeses. Distinguia-se cada classe pelos trajos. Se eu quisesse, fácil me seria deitar a mão a um ou mais desses visitantes, que me contemplavam espantadíssimos. Nem o tentei. Sentia-me agradecido pela bondade com que fora tratado e não tinha em consciência o direito de lhes dar a mais leve beliscadura. Antes pelo contrário, se atendesse unicamente ao meu problema alimentar ... 0 que eu sentia, porém, era grandíssima vontade e até necessidade de dormir. Adormeci pesadamente, nem sequer me impedindo de repousar os passinhos miúdos dos estranhos transeuntes que formigavam sobre o meu corpo. Quando acordei, continuava envolto na rede de cordelinhos em que me tinham, por assim dizer, embrulhado. Ao que mais tarde vim a saber, o Imperador daquele país, que se chamava o país de Lilipucia, fora informado da minha chegada, por um guarda da praia, mal eu a alcançara, e mandara que se construísse um imenso carro para me transportarem, sempre amarrado, até à Capital do seu Império. Lá estava o carro, com efeito. Tinha um metro e oitenta centímetros de comprimento, vinte rodas, e mil e quinhentos cavalos vigorosos, aí do tamanho de ratos grandes, puxavam-no com ímpeto. 0 pior foi içar-me para tal veículo. Só à força de cordas e de roldanas. Um trabalhão! Novecentos homenzitos, Lilipucianos valentes, gritando várias vezes Hekinah degul, e obedecendo ao Comandante Hurgo, que lhes recomendava "cuidado! cuidado!", na sua linguagem, ergueram-me do solo e atiraram-me para cima do carro. Ali, amarraram-me solidamente, e toca para a cidade que não estava muito longe do que um simples quilómetro. Mas esse quilómetro levou mais de um dia a percorrer. Durante esse tempo, dormi outra vez. Tinham-me dado um soporífero.De súbito, acordei, espirrando estrondosamente. 0 capitão dos meus guardas lembrou-se de enterrar a espadinha na minha narina esquerda. Foram tais as cócegas que logo despertei. Não adormeci mais.Este foi o único incidente do caminho. No dia seguinte, de manhã, paramos à distância de cinquenta metros da capital de Lilipucia.Nesse lugar, existia um templo, que fora profanado em épocas idas, e no qual, portanto, não se praticava o culto. Seria essa a minha moradia. Para os naturais da terra era muito vasta, sem dúvida. Para mim, bastava, em comprimento. Quanto à altura, não ia além da dum vulgar canil! Em frente, erguia-se uma torre da mesma altura, onde se instalaria o Imperador e a sua corte para me contemplarem de perto e sem perigo.Tiraram-me então do carro, sem me desamarrarem, já se vê, e meteram-me dentro do antigo templo. Vieram depois os serralheiros de Sua Majestade e fixaram à porta oitenta e uma correntes de aço, não mais grossas do que fortes cadeias dos nossos relógios de bolso. Essas cadeias, seguras na porta, foram aferrolhadas à minha perna esquerda com trinta e seis cadeados. Então, depois de verificarem, que me seria impossível quebrar tão sólidas cadeias, os operários cortaram todas as cordazitas que me prendiam ainda.Pude erguer-me e mover-me melhor. Mas que tristeza, que profunda mágoa! Sentia-me cão no canil, acorrentado, privado de verdadeira liberdade!Cada vez mais, para me admirar, a multidão engrossava, aumentava despropositadamente. Gulliver transformado em espectáculo, que vexame para mim. E se se lembrassem de me atacar? Mas - não. 0 Imperador proibira, sob pena de morte, que me tocassem, e o povo tinha de contentar-se com contemplar-me. Aborrecido e cansado, deitei-me ao comprido no nicho, e busquei repousar de tanta comoção já sofrida.

Adaptação Livre da Obra de Jonathan Swift por JOÃO DE BARROS, As viagens de Gulliver, Livraria Sá da Costa

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Zé Pimpão «O Acelera» III

Até que um dia, sem querer,
estando o piso molhado,
numa curva apertada
deixou o caldo entornado.

Tinha cervejas a mais
e sentia-se um herói,
mas só no hospital
é que viu como isso dói.

O pior é que o despiste
atingiu duas crianças
enquanto o Pimpão, sem rumo,
só baralhava as mudanças.

Agora, todo engessado,
vai ter contas a prestar,
mas já faz novos planos
para a hora regressar.

A malta lá do seu bairro
já o vê de outra maneira
e a basófia do herói
só tresanda a baboseira.

E o campeão de ralis,
em que nunca ninguém o viu.
já só tem como troféus
os dois miúdos que atingiu.

E quando se vê ao espelho,
com essas proezas todas,
o único carro que encontra
é a cadeira de rodas.

Da história deste «acelerar»
retira-se uma lição:
anda muito criminoso
com estilo de campeão.

A estrada não é um campo
para p pimpão ser guerreiro,
a pressa nunca ajudou
quem teima em ser o primeiro.
José Jorge Letria, Zé Pimpão «O Acelera», Terramar

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Zé Pimpão «o Acelera»- Parte II


Sempre, sempre a acelerar,
foi erguendo a sua fama:
«ó malta, eu sou maior
e comigo não há drama!»

Na estrada, de prego a fundo,
cuidados tinha tão poucos
que os outros a protestar,
depressa ficavam roucos.

Mas ele não se importava
pois já não era o Pimpão,
dera a si mesmo o título
de invencível campeão.

E os outros não contavam,
só lá estavam para estorvar
e, se ao volante iam mulheres,
tratava de as insultar:

“Ó lesma, ó azelha,
vê lá se sais do caminho,
pois a estrada é dos ases
como aqui o rapazinho!”

Pela janela do carro
tudo podia sair,
desde latas de cerveja
até pregos de faquir.

A estrada era a lixeira
do nosso Zé Pimpão,
quem quisesse que limpasse,
de certeza ele é que não.

Guardar o lixo no carro
era coisa mal cheirosa
e deitá-lo num contentor
era tarefa pouco honrosa.

Por isso abria a janela
e « atenção, lá vai disto!»
tinha quase a pontaria
de um lançador de disco.

Até numa auto-estrada,
quando ia em viagem,
queria ser o campeão
em cada ultrapassagem.

E se a brigada de trânsito
aparecia no caminho,
abrandava logo a marcha,
mas só por um bocadinho.

E, pelo sim pelo não,
avisava outros passantes
fazendo sinais de luzes,
mesmo para os mais distantes.

Até nisso se sentia
um valente campeão
nessa arte de avisar
companheiros de condução,

E mal passava um perigo
lá voltava a acelerar
que a estrada era só dele,
mesmo se fosse a passear.

Limites de velocidade
para ele nunca contavam,
só serviam para as «lesmas»
que na estrada o atrasavam.

E nas passagens de peões,
era raro vê-lo parar,
quem ia a pé que esperasse,
que o Pimpão queria passar.

E quanto à prioridade
de quem vinha da direita,
só era para respeitar
se houvesse polícia à espreita.

E lá comos seus botões,
de pé no acelerador,
o Pimpão ria e dizia:
«Cá o rapaz é o maior!»

Em ralis nunca entrou
mas sabia prometer
que, no dia em que entrasse,
seria só para vencer.

O carro era o seu mundo,
o volante a sua amada,
o insulto a sua arma
e a buzina a sua espada.

A guiar não tinha par
sentia-se um campeão
e, ao meter as mudanças,
acelerava o coração.

José Jorge Letria, Zé Pimpão «O Acelera», Terramar

terça-feira, 3 de junho de 2008

Zé Pimpão «O Acelera»

O meu nome é Luís Caetano e sou um dos membros do Clube de Leitura. Numa das sessões anteriores li o livro «Zé Pimpão «O Acelera» de José Jorge Letria e, como gostei muito, deixo aqui um excerto. Espero que também gostem.


José Maria Pimpão
lá trocou o seu carrito
e, mesmo em segunda mão
parecia o último grito.

Cromou-lhe os pára-choques,
pôs faróis de nevoeiro
e uma buzina estridente
de ensurdecer o parceiro.

No espelho retrovisor,
pendurou uma mascote,
uma bola e uma santinha,
uma boneca com decote.

E pôs o escape a roncar
como se fosse um leão
ou não fosse aquele carro
do Zé Maria Pimpão.

Na oficina do bairro,
escolheu uma cor berrante,
para o seu novo carrinho
ficar mais elegante.

Nessa noite foi ao baile
da colectividade
e quis mostrar a todos
a garrida novidade.

Bebeu cervejas a mais
e uns tintos á mistura
e, à saída, buzinou
só para fazer figura.

Como era um figurão,
mesmo para a malta dali,
anunciou que ia entrar
já no próximo rali.

E escolheu o Zé marosca
para ser o seu parceiro,
troféus não faltariam
e nem sequer bom dinheiro.

Carro novo e muito copos
deixaram-lhe a sensação
de, mesmo estando parado,
já ser grande campeão.

A malta vendo-o passar,
fosse Inverno ou Primavera,
nem lhe chamava pimpão,
só lhe chamava «Acelera».

Ao volante do carrito,
com prego sempre fundo,
o acelera do bairro
parecia senhor do mundo.

Passava à porta da escola
acelerando e buzinando,
para atrair as miúdas
com o seu andar de malandro.

De escape aberto a roncar,
com rádio muito alto,
parecia um tanque de guerra
a preparar o assalto.

Se parava num semáforo
olhava logo para o lado
com ar desafiador
para quem lá estava parado.

E até parecia dizer:
“Vamos fazer uma corrida
e sou eu que vou ganhar,
nem que arrisque a própria vida”

Para a malta da pesada
lá da colectividade,
o Pimpão era o herói
que deslumbrava a cidade.
(...)

José Jorge Letria, Zé Pimpão «O Acelera», Terramar

segunda-feira, 2 de junho de 2008

A Nau Catrineta


Lá vem a nau Catrineta
Que tem muito que contar!
Ouvide, agora, senhores,
Uma história de pasmar.
Passava mais de ano e dia
Que iam na volta do mar
Já não tinham que comer,
Já não tinham que manjar.
Deitaram sola de molho
Para o outro dia jantar;
Mas a sola era tão rija
Que a não puderam tragar.
Deitaram sorte à ventura
Qual se havia de matar;
Logo foi cair a sorte
No capitão general. -
- Sobe, sobe, marujinho,
Àquele mastro real,
Vê se vês terras de Espanha,
As praias de Portugal.
"Não vejo terras de Espanha,
Nem praias de Portugal;
Vejo sete espadas nuas
Que estão para te matar". -
- Acima, acima gajeiro,
Acima ao tope real!
Olha se enxergas Espanha,
Areias de Portugal
"Alvíçaras, capitão,
Meu capitão general!
Já vejo terra de Espanha,
Areias de Portugal.
Mais enxergo três meninas
Debaixo de um laranjal:
Uma sentada a coser,
Outra na roca a fiar,
A mais formosa de todas
Está no meio a chorar". -
-Todas três são minhas filhas,
Oh! quem mas dera abraçar!
A mais formosa de todas
Contigo a hei-de casar.
"A vossa filha não quero,
Que vos custou a criar". -
- Dar-te-ei tanto dinheiro,
Que o não possas contar.
"Não quero o vosso dinheiro,
pois vos custou a ganhar! -
- Dou-te o meu cavalo branco,
Que nunca houve outro igual.
"Guardai o vosso cavalo,
Que vos custou a ensinar". -
-Dar-te-ei a nau Catrineta
Para nela navegar.
"Não quero a nau Catrineta
Que a não sei governar". -
- Que queres tu, meu gajeiro,
Que alvíçaras te hei-de dar?
"Capitão, quero a tua alma
Para comigo a levar". -
- Renego de ti, demônio,
Que me estavas a atentar!
A minha alma é só de Deus,
O corpo dou eu ao mar.
Tomou-o um anjo nos braços,
Não o deixou afogar.
Deu um estouro o demónio,
Acalmaram vento e mar;
E à noite a nau Catrineta
Estava em terra a varar.

Almeida Garrett