Era uma vez um ferro-velho. Num canto da loja, coberta de pó e de teias de aranha, vivia uma cadeira carunchosa. Era a mais velha, a mais desprezada das cadeiras do ferro-velho. As outras troçavam dela:
- A “Carunchosa” é a vergonha das cadeiras- dizia a cadeira “Dourada”- no lume é que ela estava bem.
- Ou então no lixo- atalhou a sua prima, a de espaldar, por alcunha a “Tesa”. As cadeiras rústicas e as de estilo americano riram às gargalhadas. A “Vermelha”, que tinha partido uma perna, de tanto rir até caiu ao chão. Só as cadeiras tristes, da sala de espera, não acharam graça. Estavam fartas da “Dourada” e da “Tesa”, das suas conversas mesquinhas.
A vida no ferro-velho era monótona. Aquelas cadeiras, agora desirmanadas, lembravam-se de melhores dias. Todos tinham tido uma família. Recordavam a carícia do pano de pó, o peso ou a leveza dos seus donos- às vezes a sua brutalidade. À “Vermelha” por exemplo faltava uma perna. Outras mostravam arranhões, o assento rasgado. Mas apesar disso, da brutalidade com que às vezes eram tratadas, suspiravam por ser compradas de novo. A “Carunchosa” é que não. Estava tão velha, tão cansada! Ela que atravessara dois séculos, que servira várias gerações, só pedia uma coisa: que a deixassem em paz, era por isso que se escondia atrás das outras, quando algum cliente entrava na loja.
Ora, num dia em que as cadeiras conversavam sobre a sua triste vida, o dono do ferro-velho disse para o empregado:
- Logo mando cá um comprador. Mostre-lhe as cadeiras que temos.
A “Dourada” e a “Tesa” empertigaram-se.
- Serei eu a escolhida- disse a “Dourada”- nenhuma de vocês tem a minha graça, a minha elegância...
- Perdão minha prima- ripostou a “Tesa”- pode ser muito engraçada mas não tem a minha distinção.
As outras cadeiras embora se sentissem inferiores, também tinham esperança. Se o cliente fosse de recursos modestos, talvez as preferisse... Até mesmo a “Vermelha”, a quem chamavam a “Manca”, estava entusiasmada. Com uma perna nova podia ainda servir.
Só a “Carunchosa”, indiferente a tudo, se mantinha quieta, no seu canto.
O cliente chegou à tardinha. O empregado mostrou-lhe as cadeiras uma por uma, gabando as suas qualidades. Mas o homem abanava a cabeça.
- Não temos não senhor... Ah! Só se for aquela!- disse, de repente, apontando para a “Carunchosa”.
- Deixe-me vê-la bem.
O empregado pegou na “Carunchosa”, limpou-a e pô-la no meio da casa, onde a luz era mais viva. As outras cadeiras, sustendo o riso, aguardavam. Será que o comprador iria preferir aquela cadeira tão feia, tão carunchosa?...
Mas o cliente parecia não ter pressa. Olhava, encantado para a cadeira, em que descobria uma preciosidade. Por fim, disse:
- Quanto quer por ela? Compro-a!
E pagou sem regatear, uma boa quantia pela “Carunchosa”.
Que lição para as outras cadeiras! Naquela noite, de envergonhadas, nem conseguiram dormir.
Madalena Gomes, Contos para a Catarina
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