quinta-feira, 12 de novembro de 2009

O Coelho e os Gigantes

Naquele tempo, o meu pai contava-me muitas histórias de gigantes. Eu não queria adormecer sozinho, de maneira que ele sentava-se na minha cama e entretinha-me, enquanto não chegava o João Pestana. A verdade é que o meu pai não sabia as histórias de cor e ia inventando, à medida que ia contando. Algumas histórias, que começavam sempre com «Era uma vez um gigante», desconfio que ele as inventou de uma ponta à outra.
Mas a partir do momento em que a história era contada eu não admitia variantes. Queria ali todos os pormenores. Acho que todos os miúdos têm esta atenta memória que contradiz e mete na ordem os adultos contadores, quando são distraídos.
Pois naquela altura saltitava lá por casa um coelhito malhado. Não era um desses coelhos anões, cinzentos e cheios de peneiras, armados em fidalgos, que se vendem agora nos centros comerciais. Não. Era um robusto coelho do campo, muito curioso, de narizito sempre a farejar, grande apreciador de cenouras.
Houve alguém que nos ofereceu aquele coelho, no pressuposto de que o destinaríamos à panela, com batatas e ervas cheirosas. Mas naquela nossa casa não havia ninguém capaz de sacrificar um animal, para mais simpático e dado ao convívio.
De início, ficou numa marquise. Todas as manhãs, quando se abria a porta da marquise vinha cumprimentar-nos, farejando-nos os pés e empinando-se a olhar para nós. Não tardou que circulasse por toda a casa e me fizesse companhia naquelas brincadeiras que demoravam o dia inteiro.
…Era um coelho extremamente asseado. Tinha lá o seu sítio de recolhimento e fez questão de nunca deixar noutro lado aquelas bolinhas pretas e redondinhas que os coelhos costumam distribuir.
E bom companheiro que ele era. Tinha imenso jeito para andar nos carrinhos, ajudava a descarrilar o comboio de brinquedo, e admirava, com sinceridade, as maravilhosas obras de engenharia que eu construía com o meu «Meccano».
Eu já deixara de invejar os outros miúdos que tinham cães e gatos nos quintais. Nenhum se comparava ao meu coelho, nem sabia brincar com tanta classe.
Os homens são ingratos. Quando crescem, ainda mais. Imaginem que eu me esqueci completamente do nome do meu coelhinho. Certo é que ele acudia aos chamamentos e vinha de onde estivesse, saltitão, com o tufo peludo do rabito no ar. Eu podia agora improvisar um nome e fazer de conta que o bicho se chamava, por exemplo, «Pinóquio» ou «Lanzudo». Mas não quero inventar nada. Quero contar tudo como era. Esqueci-me do nome, passou-me, pronto!
Mas... um dia comecei a ouvir os adultos a segredar, lá em casa. Desconfiei logo que se tratava do meu coelho, e era mesmo. Um amigo, possuidor duma quinta, tinha-se oferecido para instalar o bicho no campo e os meus pais – com aquele irritante bom senso que compete aos mais crescidos – haviam considerado a proposta interessante. Sempre era melhor para o animal andar em liberdade, ao ar livre, entre arvoredos, na companhia dos seus iguais e das aves de capoeira... E quando eu protestava, com muita força, limitavam-se a abraçar-me e sorrir.
E lá levaram o coelhinho, aproveitando uma distracção minha. O que eu barafustei! Foi um tremendo desgosto. Ao deitar, não quis ouvir histórias de gigantes. Durante toda a noite chorei e exigi a devolução do meu companheiro. Em vão.
Espero que ele tenha sido feliz lá na tal quinta. Ainda hoje, quando vejo um orelhudo malhado a saltitar, pataludo, com os olhos vivos e o nariz sempre em acção, consolo-me sempre com a ideia de que pode ser um dos descendentes daquele saudoso coelhinho da minha infância. E quando contar aos meus netos histórias de gigantes, talvez introduza nos contos as peripécias de um herói orelhudo.

Mário de Carvalho, «O Coelho e os Gigantes»,
in Boletim Cultural – Memórias da Infância, Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, 1994

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Sábios como camelos

Há muitos anos viveu na Pérsia um grão-vizir - nome dado naquela época aos chefes dos governos - que gostava imenso de ler. Sempre que tinha de viajar ele levava consigo quatrocentos camelos, carregados de livros, e treinados para caminhar em ordem alfabética. O primeiro camelo chamava- se Aba, o segundo Baal, e assim por diante, até ao último, que atendia pelo nome de Zuzá. Era uma verdadeira biblioteca sobre patas. Quando lhe apetecia ler um livro o grão-vizir mandava parar a caravana e ia de camelo em camelo, não descansando antes de encontrar o título certo.
Um dia a caravana perdeu-se no deserto. Os quatrocentos camelos caminhavam em fila, uns atrás dos outros, como um carreirinho de formigas. À frente da cáfila, que é como se chama uma fila de camelos, seguiam o grão-vizir e os seus ministros. Subitamente o céu escureceu, e um vento áspero começou a soprar de leste, cada vez mais forte. As dunas moviam-se como se estivessem vivas. O vento, carregado de areia, magoava a pele. O grão-vizir mandou que os camelos se juntassem todos, formando um círculo. Mas era demasiado tarde. O uivo do vento abafava as ordens. A areia entrava pela roupa, enfiava-se pelos cabelos, e as pessoas tinham de tapar os olhos para não ficarem cegas. Aquilo durou a tarde inteira. Veio a noite e quando o Sol nasceu o grão-vizir olhou em redor e não foi capaz de descobrir um único dos quatrocentos camelos. Pensou, com horror, que talvez eles tivessem ficado enterrados na areia. Não conseguiu imaginar como seria a vida, dali para a frente, sem um só livro para ler. Regressou muito triste ao seu palácio. Quem lhe contaria histórias?
Os camelos, porém, não tinham morrido. Presos uns aos outros por cordas, e conduzidos por um jovem pastor, haviam sido arrastados pela tempestade de areia até uma região remota do deserto. Durante muito tempo caminharam sem rumo, aos círculos, tentando encontrar uma referência qualquer, um sinal, que os voltasse a colocar no caminho certo. Por toda a parte era só areia, areia, e o ar seco e quente. À noite as estrelas quase se podiam tocar com os dedos.
Ao fim de quinze dias, vendo que os camelos iam morrer de fome, o jovem pastor deu-lhes alguns livros a comer. Comeram primeiro os livros transportados por Aba, ou seja, todos os títulos começados pela letra A. No dia seguinte comeram os livros de Baal. Trezentos e noventa e oito dias depois, quando tinham terminado de comer os livros de Zuzá, viram avançar ao seu encontro um grupo de homens. Eram as tropas do grão-vizir.
Conduzido à presença do grão-vizir o jovem guardador de camelos, explicou-lhe, chorando, o que tinha acontecido. Mas este não se comoveu:
- Eras tu o responsável pelos livros - disse -, assim por cada livro destruído passarás um dia na prisão.
O guardador de camelos fez contas de cabeça, rapidamente, e percebeu que seriam muitos dias. Cada camelo carregava quatrocentos livros, então quatrocentos camelos transportavam cento e sessenta mil! Cento e sessenta mil dias são quatrocentos e quarenta e quatro anos. Muito antes disso morreria de velhice na cadeia.
Dois soldados amarraram-lhe os braços atrás das costas. Já se preparavam para o levar preso, quando Aba, o camelo, se adiantou uns passos e pediu licença para falar:
- Não faças isso, meu senhor - disse Aba dirigindo-se ao grão-vizir - esse homem salvou-nos a vida.
O grão-vizir olhou para ele espantado:
- Meu Deus! O camelo fala!?
- Falo sim, meu senhor - Confirmou Aba, divertido, com o incrédulo silêncio dos homens.
- Os livros deram-nos a nós, camelos, a ciência da fala.
Explicou que, tendo comido os livros, os camelos haviam adquirido não apenas a capacidade de falar, mas também o conhecimento que estava em cada livro. Lentamente enumerou de A a Z os títulos que ele, Aba, sabia de cor. Cada camelo conhecia de memória quatrocentos títulos.
- Liberta esse homem - disse Aba -, e sempre que assim o desejares nós viremos até ao vosso palácio para contar histórias.
O grão-vizir concordou. Assim, a partir daquele dia, todas as tardes, um camelo subia até ao seu quarto para lhe contar uma história. Na Pérsia, naquela época, era habitual dizer-se de alguém que mostrasse grande inteligência:
- Aquele homem é sábio como um camelo.
Isto foi há muito tempo. Mas há quem diga que, quando estão sozinhos, os camelos ainda conversam entre si.
Pode ser?

Conto retirado do livro de Eduardo Agualusa, Estranhões e Bizarrocos (literatura infantil, 2000).

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

A Fada das Crianças

Do seu longínquo reino cor-de-rosa,
Voando pela noite silenciosa,
A fada das crianças vem, luzindo.
Papoilas a coroam, e, cobrindo
Seu corpo todo, a tornam misteriosa.
À criança que dorme chega leve,
E, pondo-lhe na fronte a mão de neve,
Os seus cabelos de ouro acaricia —
E sonhos lindos, como ninguém teve,
A sentir a criança principia.
E todos os brinquedos se transformam
Em coisas vivas, e um cortejo formam:
Cavalos e soldados e bonecas,
Ursos e pretos, que vêm, vão e tornam,
E palhaços que tocam em rabecas...
E há figuras pequenas e engraçadas
Que brincam e dão saltos e passadas...
Mas vem o dia, e, leve e graciosa,
Pé ante pé, volta a melhor das fadas
Ao seu longínquo reino cor-de-rosa.

FERNANDO PESSOA
Literatura oral tradicional

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

A menina do capuchinho vermelho no século XXI

A Menina do Capuchinho Vermelho estava farta de viver num tempo antigo, num livro antigo.
Apanhou um dia o João, muito entretido a ler a sua história, e disse-lhe:
- Ajuda-me a saltar para o século XXI.
- Boa ideia! – exclamou o rapaz. Vem daí.

A garota pousou os pés no chão da sala, olhando à sua volta, espantada.
- Repara, está um elefante junto da tua janela.
Ele riu-se.
- Impossível! Eu moro no décimo andar. Aqui só chegam os pássaros.
A menina apontou para a televisão.
Mexendo no comando, o amigo mudou de canal e logo apareceu, por trás do vidro, o fundo do mar.
- Afinal tens uma caixa mágica – concluiu ela, preparando-se para ficar toda a tarde a ver filmes.
Mas o João tinha combinado ir visitar a avozinha.
- Veste o anorak azul – recomendou a mãe. — E leva uns bolinhos à avó Maria.
O rapaz vestiu o anorak, deu a mão à menina e saíram juntos.
- Esqueceste-te dos bolinhos que a tua mãe fez...
Como resposta, o garoto entrou com ela no supermercado.
- Aqui é que eu compro os bolos. A minha mãe passa o dia a trabalhar numa fábrica, não tem tempo para fazer gulodices.
A rapariga ficou admirada com aquela loja gigantesca. Esfregou os olhos pois parecia que estava num sonho. Para mostrar que era crescida e ajuizada, aconselhou:
- Não vamos pela floresta, que aí podemos encontrar o lobo mau...
João desta vez não se riu. A floresta à volta da cidade ardera no verão. Tinham-lhe deitado fogo para construírem mais prédios.
- E eu que gosto tanto de florestas...— choramingou a Capuchinho Vermelho. – nem posso pensar no mundo sem o verde das árvores, o perfume das flores, os bicharocos selvagens...
Iam a atravessar a rua quando... zás! surgiu um carro a grande velocidade.
As crianças fugiram para o passeio mas o veículo ainda embateu no saco de bolos do supermercado. Ficaram feitos numa papa.
- Cuidado! – gritou um polícia. Tomem atenção aos sinais. Querem morrer atropelados?
A menina nunca tinha visto um automóvel mas, depois daquela experiência, concluiu:
- Estou a ver que os carros ainda são mais perigosos que os lobos.
Cuidadosamente foram andando até casa da avozinha, que morava numa pequena vivenda com jardim.
- Truz, truz, truz! – bateu a menina.
- Trim, trim, trim! – tocou o rapaz à campainha.
A Dona Maria, espreitando pelo vídeo de porta, respondeu logo:
- Entra, meu netinho. Trazes uma amiguinha? Lembra mesmo a menina do Capuchinho Vermelho.
- E sou – exclamou ela. - Como hoje já não vou visitar a minha avó, fica para si o pão de ló que guardo no cestinho, feito com ovos das nossas galinhas.
A senhora ficou deliciada.
- Que maravilha! Hás-de me dar a receita.
Foi à dispensa buscar laranjadas e lancharam os três.
A certa altura, o telefone tocou. A avó foi atender. Quando pousou o telemóvel, até os olhos lhe sorriam.
- Como o lobo da velha história não veio visitar-nos, podemos ir nós visitar os lobos.
A menina do Capuchinho Vermelho assustou-se. O rapaz do anorak azul entusiasmou-se.
- Leva-nos ao jardim zoológico, avó?
- Não. No jardim zoológico, os lobos, coitados, estão presos numas jaulas. Até metem dó.
- Então? – perguntou o neto.
- Falou-me o Sr. Costa, que trabalha na reserva do Lobo Ibérico, para os lados da Malveira. Ofereceu-se para nos levar de boleia até lá, de jeep.
A garota desatou a tremer.
- Ai, os lobos devoram as meninas e as avozinhas... tenho medo. Vou voltar para a minha história.
- Que rapariga tão medricas! Há uma rede a separar-nos dos animais – disse a Dona Maria.
Lá foram os quatro. Passaram terras queimadas, povoações, chegando finalmente a uma casinha de madeira numa clareira.
- Já estou no meu ambiente! – exclamou a menina.
- Agora, – avisou o Sr. Costa – nada de barulho para não espantarmos os bichos.
- Vai caçá-los?—perguntou a garota, habituada aos caçadores que matavam os lobos no seu tempo.
- Não. É a hora da refeição deles.
- Que horror! – Eles têm horas certas para atacar os rebanhos? – afligiu-se a Capuchinho.
Os empregados do parque começaram então a dar de comer aos lobos, atirando pedaços de carne por cima da vedação.
- Parecem cães polícias! São lindos! Gostava de ter aquele com um olho azul, outro castanho.
O Sr. Costa disse então que podiam ser padrinhos de um lobo. Ajudavam-no a sobreviver e podiam visitá-lo sempre que quisessem.
- Eu quero ser madrinha de um bebé, do mais pequenino – murmurou a garota, já reconciliada com os seus antigos inimigos.
Foram até à casa de madeira. Cada um preencheu um papel. Depois receberam as fotografias dos seus afilhados.
A avó tirou dinheiro da carteira e entregou-o à senhora que estava ao balcão.
- É uma prenda para os nossos irmãos lobos, tão perseguidos ao longo dos séculos. O mundo também é deles!
Quando voltaram para casa, o menino do anorak azul perguntou à menina do capuchinho vermelho:
- Afinal peço à minha mãe para dormires no sofá-cama ou voltas para a tua história?
Digam-me lá vocês o que acham que ela resolveu.


Luísa Ducla Soares, in Associação de Professores de Português

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Poema às Notas


Sem um euro pedi notas,
Ontem à noite, aos meus pais.
Deram-me notas e notas,
mas só notas musicais.

Mandaram-me tirar notas
e ter atenção na aula.
Fui preso por roubar notas
da minha colega Paula.

Hoje vou receber nota
do ponto de português.
Com ela vou jantar fora
ao restaurante chinês…


Luísa Ducla Soares

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Trava-línguas

Trava línguas é uma brincadeira com palavras difíceis de pronunciar quando estão juntas
Tenta dizer rapidamente os que se seguem



O tempo perguntou ao Tempo
quanto tempo o Tempo tem.
O Tempo respondeu ao tempo
que o tempo tem tanto tempo
quanto tempo o Tempo tem.


Disseram que na minha rua
tem paralelepípedo feito de paralelogramos.
Seis paralelogramos tem um paralelepípedo.
Mil paralelepípedos tem uma paralelepipedovia.

Uma paralelepipedovia tem mil paralelogramos.
Então uma paralelepipedovia é uma paralelogramolândia?


Está o céu estrelado?
Quem o estrelaria?
O homem que o estrelou,
Grande estrelador seria.


segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Bom ano lectivo


Caros amiguinhos,

o Clube de Leitura entrou no seu 3º ano de funcionamento.
Esperamos, mais uma vez, corresponder às vossas expectativas enquanto leitores assíduos do nosso blogue.
Queremos desejar a todos um óptimo ano lectivo.