quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Chuva De Verão


Foram dias de muito chuva os que depois vieram. Olhávamos através dos vidros das janelas para aquele céu fechado sobre as nossas cabeças, e contávamos as minúsculas gotas de água que escorregavam e se transformavam em gotas grandes, gordas, que faziam pequenos ribeiros nos parapeitos.
E porque chovia, as pessoas tinham um olhar diferente, e quando se cruzavam umas com as outras sorriam discretamente e murmuravam «que tempo este, santo Deus», ao que geralmente respondiam «nem parece Verão!»
E porque chovia, a Irene fechava com muito cuidado as janelas dos nossos quartos, e à noite eles tinham um leve cheiro a bafio, e uma humidade morna amaciava as paredes.
E porque chovia, o Manuel do Canto não tinha mãos a medir, e todos se lembravam de telefonar a amigos, a familiares, e quando as chamadas demoravam todos se queixavam, todos andavam para cá e para lá no grande corredor à espera da sua vez, até que o Manuel do Canto levava as mãos à cabeça e murmurava com os botões da farda: «Este PBX ainda rebenta um dia destes!»
E porque chovia, a passadeira da entrada tinha manchas de água que escorria dos chapéus-de-chuva de quem entrava a correr, vindo dos tratamentos.
E porque chovia, a sala grande enchia-se de senhoras que teciam intermináveis toalhas de croché em complicados desenhos de abertos e fechados, ou batiam as agulhas de tricot uma na outra em camisolas para o Inverno que não tardava.
E porque chovia, as senhoras diziam palavras atrás de palavras, e o tempo escorria gorduroso pelo meio delas, e falavam de fios de prata e de fios de ouro, e do muito dinheiro que iam gastar no hotel, ou então em doenças, ou em pessoas que tinham morrido, «e que impressão me fez olhar para aquele sofá onde ela se costumava sentar».
E porque chovia, os homens lançavam cartas de jogar em cima da mesa, coberta de flanela verde e com pequenos cinzeiros nos quatro cantos, que o vício de jogar outros vícios consigo trazia.
E porque chovia, o Sr. Filipinho esfregava mais as mãos quando passava por nós, e a D. Adelaide parecia mais curvada sobre a bengala.


Alice Vieira, Águas de Verão, Caminho

terça-feira, 6 de novembro de 2007

O Acordar de Salpico

A mãe entrou-lhe de rompante no quarto:
- Ó rapaz, são quase horas de sairmos e ainda aí estás!
Arrancou-o da cama, atirou com a porta e enfiou-o na casa de banho.
Ele deixou-se lavar, vestir, pentear, engoliu à pressa o leite que lhe enfiou pela boca abaixo a mãe, enquanto gritava: “Miguel, não te esqueças disto, Teresa, vê se fazes aquilo” e dizia para si própria: “Hoje, não me posso esquecer de ir ao supermercado à hora do almoço. Preciso de fruta, leite, manteiga…”
Naquela casa – aprendeu Salpico – nascia barulho por todo o lado: nas vozes das pessoas, nos rádios, nos gira-discos e gravadores, nas janelas abertas, nas casas dos vizinhos…
O carro do pai arrancou com grande barulho para a distribuição: uns para a escola, outros para o trabalho.
Salpico sentou-se no banco de trás, entre os irmãos, mordiscando o pão.
O pai continuava interessado nas notícias do rádio, a mãe virava-se para trás e gritava coisas de que se ia lembrando. A Teresa levantava um dos auscultadores e perguntava:

- O quê? Não oiço.
Depois de atravessarem muita confusão, muitos carros a buzinar e condutores a gritarem uns aos outros, despejaram-no na escola, onde a mãe o apresentou à pressa à professora e foi-se embora porque tinha de estar no emprego a horas.
Na escola esteve ensonado, sem interesse, desatento.
Lembrava-se da sua quinta, e comparava o seu despertar lá e aquela primeira manhã em casa dos pais. Só tinha ouvidos para o que se passava dentro de si, para as suas recordações e a tristeza que lhe enchia o coração.
A professora quis saber qual era o problema.
- Dói-me a cabeça – respondeu o Salpico e, através das perguntas da professora, acabou por contar o que se passara.
- Pois é, Luís António, a isso chama-se poluição sonora. Muito barulho, sabes? - mais do que tu podes aguentar.

Manuel Alves, Salpico, Caminho

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

A tartaruga e os patos

Era uma vez uma Tartaruga que queria conhecer o mundo. Confiou este seu desejo a dois Patos que viviam perto dela, numa lagoa.
Um belo dia, a lagoa secou e os Patos prepararam-se para partir. Antes, porém, foram despedir-se da sua amiga e fizeram-lhe um convite:
- Se quiseres, podes vir conhecer o mundo connosco. Cada um de nós segura a ponta de um ramo e tu agarras-te bem a ele com a boca. Assim, ficarás em segurança e poderás ver, lá do alto, cidades e reinos maravilhosos.
A Tartaruga nem pensou duas vezes: aceitou o convite e, nesse mesmo dia, partiram todos à aventura. Sobrevoaram aldeias, cidades e reinos de encantar. Quando passavam por cima de um campo, os camponeses admiraram-se com o que viram e gritaram:
- Vejam! Vejam! Uma Tartaruga a voar!
- Como sou extraordinária! - gritou a Tartaruga cheia de orgulho.
Porém, assim abriu a boca, largou o ramo e estatelou-se no chão.

Moral da história:
Aceita o triunfo com modéstia.

La Fontaine

domingo, 4 de novembro de 2007

A separação

No entanto, à Luísa metera-se na cabeça que me havia de trazer consigo para Lisboa. Depois de o Manuel lhe ter dito que eu lhe pertencia e que gostava muito de mim, correu para a barraca onde a vi falar com os pais. Vi- a também chorar.
Nesse mesmo dia, por volta da hora do jantar, parou um automóvel à nossa porta. Os vizinhos chegaram-se à janela, porque não acontecia todos os dias pararem automóveis naquela rua.
Do carro saíram a Luísa e os pais. Entraram na nossa casa. A Tia Júlia estava a cozinhar. Quando viu aquela gente desconhecida e bem-posta, limpou as mãos ao avental e ofereceu-lhes cadeiras. Reparei que olhavam com estranheza a cozinha e a lareira escura a fumegar . O pai da Luísa declarou à Tia Júlia que desejava comprar-me, por a sua filha gostar de mim e por ter chorado, tanto me queria.
-A senhora faça o preço que entender- propôs.
A Tia Júlia olhou para o filho, depois para mim. Foi um momento bem triste, aquele. Porque, afinal, nós três pertencíamos uns aos outros e não havia o direito de nos quererem separar.
Mas a Tia Júlia era uma mulher pobre e as coisas estavam caras. O Manuel precisava de sapatos novos e de um casaco para o Inverno. Eu sabia isso por ter ouvido a Tia Júlia dizê-lo à vizinha. Nem sei como hei-de arranjar as coisas para o meu filho, suspirava. É bem natural que estivesse naquele momento a pensar nisso e a lembrar-se de que poderia comprar o que o Manuel precisava, se me vendesse. Deve ter sido por isso que ela disse:
- Olha, meu filho, também sou amiga do Faísca, mas a verdade é que o dinheiro fazia-nos agora muito jeito.
Nem gosto de recordar! Manuel olhou para a mãe com os olhos carregados de tristeza. Não respondeu nada, mas pôs-se a chorar e abraçou-se a mim com toda a força. Então meti o rabo entre as pernas e lambi-lhe as mãos. Eu já expliquei que nós, os cães, não deitamos lágrimas. Mas o meu coração estava repleto delas, podem crer. Encolhi-me todo, magoava o peso das lágrimas no coração e fui meter-me num canto da cozinha.
A Tia Júlia afagou a cara de Manuel e o pai da Luísa disse:
- Minha senhora, se ao rapaz custa tanto separar-se do cão, desistimos, é evidente.
Mas a Tia Júlia estremeceu ao pensar que o dinheiro, neste momento, lhe fazia jeito. Por isso indicou um preço. Não sei quanto pediu, nunca percebi nada de dinheiros e de pagamentos. O senhor tirou imediatamente uma nota da carteira e deu-a à Tia Júlia.
Tentei fugir, mas a porta estava fechada. Voltei, desesperado, para o canto da cozinha.
Não olhei para a Luísa, nem gostei dela naquele momento. Afinal era uma menina que queria tudo o que se podia comprar por dinheiro. O pai era rico e ela só precisava de pedir ou de chorar para que lhe dessem o que desejava. Não pensava no Manuel, que assim perdia o melhor companheiro e que não tinha culpa de o pai não ganhar o suficiente no Brasil. Luísa era assim porque nunca ninguém lhe tinha explicado como muitas outras pessoas vivem. Os pais faziam-lhe todos as vontades por ela ser a única filha. Também o Manuel era o único filho da Tia Júlia; contudo, ela não podia fazer-lhe muitas vontades, antes pelo contrário, até se via obrigada a lhe tirar o melhor amigo de que ele tanto gostava, para lhe poder comprar as roupas de Inverno.
Em seguida o pai da Luísa e a Tia Júlia empurraram-me para dentro do automóvel. Ainda fiz uma tentativa para resistir, mas não serviu de nada, pois apareceu um vizinho a ajudar a empurrar-me.
Dentro do carro, deitei as patas ao vidro da janela, ladrei, uivei. Mas tive de partir.
O carro ia-se afastando e ainda vi o Manuel chorar e a Tia Júlia a passar-lhe as mãos pela cabeça. Ainda ouvi gritar o meu amigo:
- Faísca! Meu Faísca!
Depois, o automóvel virou uma esquina e não vi mais nada.

Ilse Losa, Faísca Conta a Sua História, Ed. ASA

sábado, 3 de novembro de 2007

Faísca Conta a Sua História

Sou um cão já velho e chamo-me Faísca. Este nome deu-mo o Manuel, pois queria por força que eu corresse muito depressa. Mas este nome só ligava bem com o meu feitio enquanto eu era novo. Nesse tempo apetecia-me, realmente, correr e saltar, tão depressa que ninguém me apanhava. Mais tarde já preferia andar devagarinho em vez de correr, e agora gosto mais é de estar refastelado, no Verão, a uma sombra fresca e, no Inverno, ao pé do lume. Acho, por isso, que o nome não foi bem escolhido: um nome não deve servir só enquanto se é novo e tornar-se ridículo quando se envelheceu. Ainda ontem ouvi uma menina rir-se às gargalhadas quando a Luísa a informou de que eu me chamava Faísca.
-Este cão tão molengão chama-se Faísca?- perguntou toda trocista.
Mas, afinal, vocês não sabem quem são o Manuel e a Luísa. Vou contar-vos tudo desde o princípio.
Nasci numa aldeiazinha do Minho. (...)


Ilse Losa, Faísca Conta a Sua História, Ed. ASA

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

O Mosquito Escreve

O mosquito pernilongo
trança as pernas, faz um M,
depois, treme, treme, treme,
faz um O bastante oblongo,
faz um S.

O mosquito sobe e desce.
Com artes que ninguém vê,
faz um Q,
faz um U, e faz um I.

Este mosquito
esquisito
cruza as patas, faz um T.
E aí,
se arredonda e faz outro O,
mais bonito.

Oh!
Já não é analfabeto,
esse insecto,
pois sabe escrever seu nome.

Mas depois vai procurar
alguém que possa picar,
pois escrever cansa,
não é, criança?

E ele está com muita fome.


Cecília Meireles

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

As Fadas








As fadas... eu creio nelas!
Umas são moças e belas,
Outras, velhas de pasmar...
Umas vivem nos rochedos,
Outras, pelos arvoredos,
Outras, à beira mar...

Algumas em fonte fria
Escondem-se, enquanto é dia,
Saem só ao escurecer...
Outras, debaixo de terra,
Nas grutas verdes da serra,
É que se vão esconder...
(...)

Umas têm mando nos ares;
Outras, na terra, nos mares;
E todas trazem nas mãos
Aquela vara famosa,
A vara maravilhosa,
A varinha de condão!

O que elas querem, num pronto
Fez-se ali! Parece um conto...
Mesmo de fadas... eu sei!
São condões, que dão à gente
Ou dinheiro reluzente
Ou jóias, que nem um rei!
(...)

Quantas vezes, já deitado,
Ma sem sono, ainda acordado,
Me ponho a considerar
Que condão eu pediria,
Se uma fada, um belo dia,
Me quisesse a mim fadar...

O que seria? Um tesouro?
Um reino? Um vestido de ouro?
Ou um leito de marfim?
Ou um palácio encantado,
Com seu lago prateado
E com pavões no jardim?






Antero de Quental,
Tesouro Poético da Infância,
Lello & irmão Ed.