terça-feira, 6 de novembro de 2007

O Acordar de Salpico

A mãe entrou-lhe de rompante no quarto:
- Ó rapaz, são quase horas de sairmos e ainda aí estás!
Arrancou-o da cama, atirou com a porta e enfiou-o na casa de banho.
Ele deixou-se lavar, vestir, pentear, engoliu à pressa o leite que lhe enfiou pela boca abaixo a mãe, enquanto gritava: “Miguel, não te esqueças disto, Teresa, vê se fazes aquilo” e dizia para si própria: “Hoje, não me posso esquecer de ir ao supermercado à hora do almoço. Preciso de fruta, leite, manteiga…”
Naquela casa – aprendeu Salpico – nascia barulho por todo o lado: nas vozes das pessoas, nos rádios, nos gira-discos e gravadores, nas janelas abertas, nas casas dos vizinhos…
O carro do pai arrancou com grande barulho para a distribuição: uns para a escola, outros para o trabalho.
Salpico sentou-se no banco de trás, entre os irmãos, mordiscando o pão.
O pai continuava interessado nas notícias do rádio, a mãe virava-se para trás e gritava coisas de que se ia lembrando. A Teresa levantava um dos auscultadores e perguntava:

- O quê? Não oiço.
Depois de atravessarem muita confusão, muitos carros a buzinar e condutores a gritarem uns aos outros, despejaram-no na escola, onde a mãe o apresentou à pressa à professora e foi-se embora porque tinha de estar no emprego a horas.
Na escola esteve ensonado, sem interesse, desatento.
Lembrava-se da sua quinta, e comparava o seu despertar lá e aquela primeira manhã em casa dos pais. Só tinha ouvidos para o que se passava dentro de si, para as suas recordações e a tristeza que lhe enchia o coração.
A professora quis saber qual era o problema.
- Dói-me a cabeça – respondeu o Salpico e, através das perguntas da professora, acabou por contar o que se passara.
- Pois é, Luís António, a isso chama-se poluição sonora. Muito barulho, sabes? - mais do que tu podes aguentar.

Manuel Alves, Salpico, Caminho

Sem comentários:

Enviar um comentário

Obrigada pelo seu comentário!