Hans entrou em casa com uma braçada de lenha e foi empilhá-la ao canto da lareira. Estava cheio de frio, mas as chamas não o podiam aquecer, porque o gelo se acumulava no seu coração. O pai tinha partido para a guerra nessa mesma tarde. Decidira seguir Napoleão, alistar-se no exército francês.
Ele bem queria não pensar nisso, mas tudo naquela sala lhe lembrava o pai. Ninguém se dera ao trabalho de esconder a caneca de cerveja, as botas de neve, as tiras de couro e as agulhas muito grossas com que remendava solas e fazia sapatos.
Cabisbaixo, foi buscar o banco de madeira onde costumava sentar-se à espera da ceia, quando a avó o interpelou num tom bastante ríspido:
- Preciso que vás buscar água ao poço. Traz-me o balde maior.
Ele olhou-a surpreendido. O balde maior era enorme, não tinha forças para o transportar.
Como se lhe tivesse lido os pensamentos, a mãe interveio:
- Agora és tu o homem da casa...
A frase cravara-se-lhe no peito como uma punhalada. “O homem da casa? Mas só tenho oito anos!”
No entanto, era assim mesmo. Na família só havia mulheres: a avó, a mãe, a irmã. E todas olhavam para ele, na esperança de que as ajudasse a vencer a miséria.
Para ganhar a vida, começou por trabalhar numa fábrica, de onde foi despedido pouco depois, porque não tinha jeito nenhum para as tarefas.
O emprego seguinte também não lhe agradou nada: aprendiz numa loja de alfaiate. Não dispondo de habilidade manual, devia ser um tormento!
A responsabilidade excessiva que pesava nos seus ombros frágeis encheu-lhe a alma de melancolia. Assim, nas horas vagas, em vez de brincar com os rapazes da mesma idade, refugiava-se num canto a ler e a escrever poemas.
Certo dia, porém, teve um encontro muito animador. Na vizinhança, havia uma velha que todos consultavam para saber o futuro, porque tinha fama de adivinha.
Hans cruzou-se com ela à saída da igreja e, para seu grande espanto, a feiticeira segurou-o por um braço com um ar entusiasmadíssimo:
- Hans Christian Andersen! Quando fores muito famoso não te esqueças de mim!
- Famoso, eu?
- Sim. Vejo nos teus olhos a glória, a riqueza e a fama.
E pegando-lhe avidamente nas mãos, pôs-se a estudar as linhas que riscam a pele, como se lesse num livro.
- Eh! O que para aqui vai de sucesso! Tanta coisa boa, meu filho.
Ele nunca mais sossegou, ansioso por ir em busca do tal destino magnífico que a velha anunciara. E insistia com a mãe.
- Deixe-me ir para a capital. Deixe-me ir para Copenhaga. Para vencer na vida tenho que sair daqui.
- A mãe hesitava. A avó achava um disparate. A irmã ria-se. Mas a velha acabou por convencê-las.
Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, in “Público Júnior”, nº34, Novembro 1990