Havia um sapateiro que trabalhava à porta de casa e todo o santíssimo dia cantava. Tinha muitos filhos, que andavam rotinhos pela rua, pela muita pobreza, e à noite, enquanto a mulher fazia a ceia, o homem puxava da viola e tocava os seus batuques muito contente.
Ora defronte do sapateiro morava um ricaço, que reparou naquele viver e teve pelo sapateiro tal compaixão que Ihe mandou dar um saco de dinheiro, porque o queria fazer feliz.
O sapateiro lá ficou admirado. Pegou no dinheiro e à noite fechou-se com a mulher para o contarem. Naquela noite, o pobre já não tocou viola. As crianças, como andavam a brincar pela casa, faziam barulho e levaram-no a errar na conta, e ele teve de lhes bater. Ouviu-se uma choradeira, como nunca tinham feito quando estavam com mais fome. Dizia a mulher:
- E agora, que havemos nós de fazer a tanto dinheiro?
- Enterra-se!
- Perdemos-lhe o tino. É melhor metê-lo na arca.
- Mas podem roubá-lo! O melhor é pô-lo a render.
- Ora, isso é ser onzeneiro!
- Então levantam-se as casas e fazem-se de sobrado e depois arranjo a oficina toda pintadinha.
- Isso não tem nada com a obra! O melhor era comprarmos uns campinhos.
- Eu sou filha de lavrador e puxa-me o corpo para o campo.
- Nessa não caio eu.
- Pois o que me faz conta é ter terra. Tudo o mais é vento.
As coisas foram-se azedando, palavra puxa palavra, o homem zanga-se,
atiça duas solhas na mulher, berreiro de uma banda, berreiro da outra, naquela noite não pregaram olho.
O vizinho ricaço reparava em tudo e não sabia explicar aquela mudança. Por fim, o sapateiro disse à mulher:
- Sabes que mais? O dinheiro tirou-nos a nossa antiga alegria! O melhor era ir levá-lo outra vez ao vizinho dali defronte, e que nos deixe cá com aquela pobreza que nos fazia amigos um do outro!
A mulher abraçou aquilo com ambas as mãos, e o sapateiro, com vontade
de recobrar a sua alegria e a da mulher e dos filhos, foi entregar o dinheiro e voltou para a sua tripeça a cantar e a trabalhar como de costume.
domingo, 22 de novembro de 2009
quinta-feira, 12 de novembro de 2009
O Coelho e os Gigantes
Naquele tempo, o meu pai contava-me muitas histórias de gigantes. Eu não queria adormecer sozinho, de maneira que ele sentava-se na minha cama e entretinha-me, enquanto não chegava o João Pestana. A verdade é que o meu pai não sabia as histórias de cor e ia inventando, à medida que ia contando. Algumas histórias, que começavam sempre com «Era uma vez um gigante», desconfio que ele as inventou de uma ponta à outra.
Mas a partir do momento em que a história era contada eu não admitia variantes. Queria ali todos os pormenores. Acho que todos os miúdos têm esta atenta memória que contradiz e mete na ordem os adultos contadores, quando são distraídos.
Pois naquela altura saltitava lá por casa um coelhito malhado. Não era um desses coelhos anões, cinzentos e cheios de peneiras, armados em fidalgos, que se vendem agora nos centros comerciais. Não. Era um robusto coelho do campo, muito curioso, de narizito sempre a farejar, grande apreciador de cenouras.
Houve alguém que nos ofereceu aquele coelho, no pressuposto de que o destinaríamos à panela, com batatas e ervas cheirosas. Mas naquela nossa casa não havia ninguém capaz de sacrificar um animal, para mais simpático e dado ao convívio.
De início, ficou numa marquise. Todas as manhãs, quando se abria a porta da marquise vinha cumprimentar-nos, farejando-nos os pés e empinando-se a olhar para nós. Não tardou que circulasse por toda a casa e me fizesse companhia naquelas brincadeiras que demoravam o dia inteiro.
…Era um coelho extremamente asseado. Tinha lá o seu sítio de recolhimento e fez questão de nunca deixar noutro lado aquelas bolinhas pretas e redondinhas que os coelhos costumam distribuir.
E bom companheiro que ele era. Tinha imenso jeito para andar nos carrinhos, ajudava a descarrilar o comboio de brinquedo, e admirava, com sinceridade, as maravilhosas obras de engenharia que eu construía com o meu «Meccano».
Eu já deixara de invejar os outros miúdos que tinham cães e gatos nos quintais. Nenhum se comparava ao meu coelho, nem sabia brincar com tanta classe.
Os homens são ingratos. Quando crescem, ainda mais. Imaginem que eu me esqueci completamente do nome do meu coelhinho. Certo é que ele acudia aos chamamentos e vinha de onde estivesse, saltitão, com o tufo peludo do rabito no ar. Eu podia agora improvisar um nome e fazer de conta que o bicho se chamava, por exemplo, «Pinóquio» ou «Lanzudo». Mas não quero inventar nada. Quero contar tudo como era. Esqueci-me do nome, passou-me, pronto!
Mas... um dia comecei a ouvir os adultos a segredar, lá em casa. Desconfiei logo que se tratava do meu coelho, e era mesmo. Um amigo, possuidor duma quinta, tinha-se oferecido para instalar o bicho no campo e os meus pais – com aquele irritante bom senso que compete aos mais crescidos – haviam considerado a proposta interessante. Sempre era melhor para o animal andar em liberdade, ao ar livre, entre arvoredos, na companhia dos seus iguais e das aves de capoeira... E quando eu protestava, com muita força, limitavam-se a abraçar-me e sorrir.
E lá levaram o coelhinho, aproveitando uma distracção minha. O que eu barafustei! Foi um tremendo desgosto. Ao deitar, não quis ouvir histórias de gigantes. Durante toda a noite chorei e exigi a devolução do meu companheiro. Em vão.
Espero que ele tenha sido feliz lá na tal quinta. Ainda hoje, quando vejo um orelhudo malhado a saltitar, pataludo, com os olhos vivos e o nariz sempre em acção, consolo-me sempre com a ideia de que pode ser um dos descendentes daquele saudoso coelhinho da minha infância. E quando contar aos meus netos histórias de gigantes, talvez introduza nos contos as peripécias de um herói orelhudo.
Mário de Carvalho, «O Coelho e os Gigantes»,
in Boletim Cultural – Memórias da Infância, Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, 1994
Mas a partir do momento em que a história era contada eu não admitia variantes. Queria ali todos os pormenores. Acho que todos os miúdos têm esta atenta memória que contradiz e mete na ordem os adultos contadores, quando são distraídos.
Pois naquela altura saltitava lá por casa um coelhito malhado. Não era um desses coelhos anões, cinzentos e cheios de peneiras, armados em fidalgos, que se vendem agora nos centros comerciais. Não. Era um robusto coelho do campo, muito curioso, de narizito sempre a farejar, grande apreciador de cenouras.
Houve alguém que nos ofereceu aquele coelho, no pressuposto de que o destinaríamos à panela, com batatas e ervas cheirosas. Mas naquela nossa casa não havia ninguém capaz de sacrificar um animal, para mais simpático e dado ao convívio.
De início, ficou numa marquise. Todas as manhãs, quando se abria a porta da marquise vinha cumprimentar-nos, farejando-nos os pés e empinando-se a olhar para nós. Não tardou que circulasse por toda a casa e me fizesse companhia naquelas brincadeiras que demoravam o dia inteiro.
…Era um coelho extremamente asseado. Tinha lá o seu sítio de recolhimento e fez questão de nunca deixar noutro lado aquelas bolinhas pretas e redondinhas que os coelhos costumam distribuir.
E bom companheiro que ele era. Tinha imenso jeito para andar nos carrinhos, ajudava a descarrilar o comboio de brinquedo, e admirava, com sinceridade, as maravilhosas obras de engenharia que eu construía com o meu «Meccano».
Eu já deixara de invejar os outros miúdos que tinham cães e gatos nos quintais. Nenhum se comparava ao meu coelho, nem sabia brincar com tanta classe.
Os homens são ingratos. Quando crescem, ainda mais. Imaginem que eu me esqueci completamente do nome do meu coelhinho. Certo é que ele acudia aos chamamentos e vinha de onde estivesse, saltitão, com o tufo peludo do rabito no ar. Eu podia agora improvisar um nome e fazer de conta que o bicho se chamava, por exemplo, «Pinóquio» ou «Lanzudo». Mas não quero inventar nada. Quero contar tudo como era. Esqueci-me do nome, passou-me, pronto!
Mas... um dia comecei a ouvir os adultos a segredar, lá em casa. Desconfiei logo que se tratava do meu coelho, e era mesmo. Um amigo, possuidor duma quinta, tinha-se oferecido para instalar o bicho no campo e os meus pais – com aquele irritante bom senso que compete aos mais crescidos – haviam considerado a proposta interessante. Sempre era melhor para o animal andar em liberdade, ao ar livre, entre arvoredos, na companhia dos seus iguais e das aves de capoeira... E quando eu protestava, com muita força, limitavam-se a abraçar-me e sorrir.
E lá levaram o coelhinho, aproveitando uma distracção minha. O que eu barafustei! Foi um tremendo desgosto. Ao deitar, não quis ouvir histórias de gigantes. Durante toda a noite chorei e exigi a devolução do meu companheiro. Em vão.
Espero que ele tenha sido feliz lá na tal quinta. Ainda hoje, quando vejo um orelhudo malhado a saltitar, pataludo, com os olhos vivos e o nariz sempre em acção, consolo-me sempre com a ideia de que pode ser um dos descendentes daquele saudoso coelhinho da minha infância. E quando contar aos meus netos histórias de gigantes, talvez introduza nos contos as peripécias de um herói orelhudo.
Mário de Carvalho, «O Coelho e os Gigantes»,
in Boletim Cultural – Memórias da Infância, Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, 1994
segunda-feira, 2 de novembro de 2009
Sábios como camelos
Há muitos anos viveu na Pérsia um grão-vizir - nome dado naquela época aos chefes dos governos - que gostava imenso de ler. Sempre que tinha de viajar ele levava consigo quatrocentos camelos, carregados de livros, e treinados para caminhar em ordem alfabética. O primeiro camelo chamava- se Aba, o segundo Baal, e assim por diante, até ao último, que atendia pelo nome de Zuzá. Era uma verdadeira biblioteca sobre patas. Quando lhe apetecia ler um livro o grão-vizir mandava parar a caravana e ia de camelo em camelo, não descansando antes de encontrar o título certo.
Um dia a caravana perdeu-se no deserto. Os quatrocentos camelos caminhavam em fila, uns atrás dos outros, como um carreirinho de formigas. À frente da cáfila, que é como se chama uma fila de camelos, seguiam o grão-vizir e os seus ministros. Subitamente o céu escureceu, e um vento áspero começou a soprar de leste, cada vez mais forte. As dunas moviam-se como se estivessem vivas. O vento, carregado de areia, magoava a pele. O grão-vizir mandou que os camelos se juntassem todos, formando um círculo. Mas era demasiado tarde. O uivo do vento abafava as ordens. A areia entrava pela roupa, enfiava-se pelos cabelos, e as pessoas tinham de tapar os olhos para não ficarem cegas. Aquilo durou a tarde inteira. Veio a noite e quando o Sol nasceu o grão-vizir olhou em redor e não foi capaz de descobrir um único dos quatrocentos camelos. Pensou, com horror, que talvez eles tivessem ficado enterrados na areia. Não conseguiu imaginar como seria a vida, dali para a frente, sem um só livro para ler. Regressou muito triste ao seu palácio. Quem lhe contaria histórias?
Os camelos, porém, não tinham morrido. Presos uns aos outros por cordas, e conduzidos por um jovem pastor, haviam sido arrastados pela tempestade de areia até uma região remota do deserto. Durante muito tempo caminharam sem rumo, aos círculos, tentando encontrar uma referência qualquer, um sinal, que os voltasse a colocar no caminho certo. Por toda a parte era só areia, areia, e o ar seco e quente. À noite as estrelas quase se podiam tocar com os dedos.
Ao fim de quinze dias, vendo que os camelos iam morrer de fome, o jovem pastor deu-lhes alguns livros a comer. Comeram primeiro os livros transportados por Aba, ou seja, todos os títulos começados pela letra A. No dia seguinte comeram os livros de Baal. Trezentos e noventa e oito dias depois, quando tinham terminado de comer os livros de Zuzá, viram avançar ao seu encontro um grupo de homens. Eram as tropas do grão-vizir.
Conduzido à presença do grão-vizir o jovem guardador de camelos, explicou-lhe, chorando, o que tinha acontecido. Mas este não se comoveu:
- Eras tu o responsável pelos livros - disse -, assim por cada livro destruído passarás um dia na prisão.
O guardador de camelos fez contas de cabeça, rapidamente, e percebeu que seriam muitos dias. Cada camelo carregava quatrocentos livros, então quatrocentos camelos transportavam cento e sessenta mil! Cento e sessenta mil dias são quatrocentos e quarenta e quatro anos. Muito antes disso morreria de velhice na cadeia.
Dois soldados amarraram-lhe os braços atrás das costas. Já se preparavam para o levar preso, quando Aba, o camelo, se adiantou uns passos e pediu licença para falar:
- Não faças isso, meu senhor - disse Aba dirigindo-se ao grão-vizir - esse homem salvou-nos a vida.
O grão-vizir olhou para ele espantado:
- Meu Deus! O camelo fala!?
- Falo sim, meu senhor - Confirmou Aba, divertido, com o incrédulo silêncio dos homens.
- Os livros deram-nos a nós, camelos, a ciência da fala.
Explicou que, tendo comido os livros, os camelos haviam adquirido não apenas a capacidade de falar, mas também o conhecimento que estava em cada livro. Lentamente enumerou de A a Z os títulos que ele, Aba, sabia de cor. Cada camelo conhecia de memória quatrocentos títulos.
- Liberta esse homem - disse Aba -, e sempre que assim o desejares nós viremos até ao vosso palácio para contar histórias.
O grão-vizir concordou. Assim, a partir daquele dia, todas as tardes, um camelo subia até ao seu quarto para lhe contar uma história. Na Pérsia, naquela época, era habitual dizer-se de alguém que mostrasse grande inteligência:
- Aquele homem é sábio como um camelo.
Isto foi há muito tempo. Mas há quem diga que, quando estão sozinhos, os camelos ainda conversam entre si.
Pode ser?
Um dia a caravana perdeu-se no deserto. Os quatrocentos camelos caminhavam em fila, uns atrás dos outros, como um carreirinho de formigas. À frente da cáfila, que é como se chama uma fila de camelos, seguiam o grão-vizir e os seus ministros. Subitamente o céu escureceu, e um vento áspero começou a soprar de leste, cada vez mais forte. As dunas moviam-se como se estivessem vivas. O vento, carregado de areia, magoava a pele. O grão-vizir mandou que os camelos se juntassem todos, formando um círculo. Mas era demasiado tarde. O uivo do vento abafava as ordens. A areia entrava pela roupa, enfiava-se pelos cabelos, e as pessoas tinham de tapar os olhos para não ficarem cegas. Aquilo durou a tarde inteira. Veio a noite e quando o Sol nasceu o grão-vizir olhou em redor e não foi capaz de descobrir um único dos quatrocentos camelos. Pensou, com horror, que talvez eles tivessem ficado enterrados na areia. Não conseguiu imaginar como seria a vida, dali para a frente, sem um só livro para ler. Regressou muito triste ao seu palácio. Quem lhe contaria histórias?
Os camelos, porém, não tinham morrido. Presos uns aos outros por cordas, e conduzidos por um jovem pastor, haviam sido arrastados pela tempestade de areia até uma região remota do deserto. Durante muito tempo caminharam sem rumo, aos círculos, tentando encontrar uma referência qualquer, um sinal, que os voltasse a colocar no caminho certo. Por toda a parte era só areia, areia, e o ar seco e quente. À noite as estrelas quase se podiam tocar com os dedos.
Ao fim de quinze dias, vendo que os camelos iam morrer de fome, o jovem pastor deu-lhes alguns livros a comer. Comeram primeiro os livros transportados por Aba, ou seja, todos os títulos começados pela letra A. No dia seguinte comeram os livros de Baal. Trezentos e noventa e oito dias depois, quando tinham terminado de comer os livros de Zuzá, viram avançar ao seu encontro um grupo de homens. Eram as tropas do grão-vizir.
Conduzido à presença do grão-vizir o jovem guardador de camelos, explicou-lhe, chorando, o que tinha acontecido. Mas este não se comoveu:
- Eras tu o responsável pelos livros - disse -, assim por cada livro destruído passarás um dia na prisão.
O guardador de camelos fez contas de cabeça, rapidamente, e percebeu que seriam muitos dias. Cada camelo carregava quatrocentos livros, então quatrocentos camelos transportavam cento e sessenta mil! Cento e sessenta mil dias são quatrocentos e quarenta e quatro anos. Muito antes disso morreria de velhice na cadeia.
Dois soldados amarraram-lhe os braços atrás das costas. Já se preparavam para o levar preso, quando Aba, o camelo, se adiantou uns passos e pediu licença para falar:
- Não faças isso, meu senhor - disse Aba dirigindo-se ao grão-vizir - esse homem salvou-nos a vida.
O grão-vizir olhou para ele espantado:
- Meu Deus! O camelo fala!?
- Falo sim, meu senhor - Confirmou Aba, divertido, com o incrédulo silêncio dos homens.
- Os livros deram-nos a nós, camelos, a ciência da fala.
Explicou que, tendo comido os livros, os camelos haviam adquirido não apenas a capacidade de falar, mas também o conhecimento que estava em cada livro. Lentamente enumerou de A a Z os títulos que ele, Aba, sabia de cor. Cada camelo conhecia de memória quatrocentos títulos.
- Liberta esse homem - disse Aba -, e sempre que assim o desejares nós viremos até ao vosso palácio para contar histórias.
O grão-vizir concordou. Assim, a partir daquele dia, todas as tardes, um camelo subia até ao seu quarto para lhe contar uma história. Na Pérsia, naquela época, era habitual dizer-se de alguém que mostrasse grande inteligência:
- Aquele homem é sábio como um camelo.
Isto foi há muito tempo. Mas há quem diga que, quando estão sozinhos, os camelos ainda conversam entre si.
Pode ser?
Conto retirado do livro de Eduardo Agualusa, Estranhões e Bizarrocos (literatura infantil, 2000).
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