Aproveitem bem para descansar e divertirem-se com os vossos amigos, mas não se esqueçam que um bom livro também é um amigo.
Nós, em Setembro, voltaremos.
Boas férias e boas leituras!!!
A leitura é para o espírito o que a ginástica é para o corpo. Steele
Como vinha ricamente vestido o Soberano! Na sua pequenez, deslumbrava. Era um pouco maior do que os súbditos, mais ou menos a diferença do tamanho da unha do meu dedo mendinho. Fisionomia simpática e até bela, aspecto realmente majestoso. Bem proporcionado, elegante, de movimentos graciosos, e de porte cheio de dignidade. Na cabeça, um leve capacete ou elmo de oiro, adornado de pedras preciosas, e com um vistoso penacho ao alto. Na mão, a espada desembainhada, refulgindo. Voz clara e aguda, que se ouvia claramente, que mesmo estando eu de pé ouvia muito bem. A seu lado, segundo o que me foi possível conjecturar pelos trajos, estava um grupo de sábios. Ordenou-lhes que me dirigissem a palavra. Falei também, em todas as línguas que sabia. Mas foi em vão. Não conseguimos, porém, compreender-nos uns aos outros. Disse-lhes o meu desejo de ficar em liberdade. A resposta foi: "Lumos Kelmin pesso desmar", cujo sentido depois soube ser que eu deveria primeiro garantir que firmaria um tratado de perpétua paz com o seu povo. No entretanto, rogava-me que usasse de bondade e de paciência para com este, para assim convencer todos das minhas generosas intenções. Fez ainda revistar os meus bolsos, não escondesse eu qualquer objecto perigoso, arma ou outra coisa, e, depois de duas horas da nossa difícil conversa por meio de muitos gestos e poucas palavras, retirou-se Sua Majestade, seguida pela corte.
Não fiquei sozinho, porém. Um certo número de soldados ficou a guardar-me de possíveis excessos de curiosidade da multidão, que não cessava de acotovelar-se quase à beira do meu corpo, já então deitado ao comprido, e de o contemplar e querer tocar, maravilhada. Não se evitou, apesar das precauções ordenadas pelo Imperador, que uns rapazolas resolvessem experimentar a sua pontaria, atirando as setas aguçadas dos arcos que manejavam com muita habilidade contra os meus olhos. Quase me cegavam do olho esquerdo. 0 capitão dos guardas prendeu-os, amarrou-os e entregou-mos. Meti-os no bolso para os castigar. Arrepelavam-se e choravam, cheios de medo. Julgavam, certamente que eu os mataria. Mas soltei-os pouco depois. 0 povo apreciou grandemente a minha clemência, e deu-me palmas. Conquistava simpatias gerais momento a momento. Antes assim!
A noite desceu, no entretanto, e eu sentia-me muito precisado de dormir. Entre - mas que dificuldade! - na minha casa, e deitei-me no chão, na terra dura, que nem estrado havia para melhor conforto. 0 Imperador, verdade seja, mandara construir uma boa cama para mim. Mas levou tempo a fazê-la. 0 colchão sobretudo, cujas dimensões pareciam gigantescas àquela raça tão miudinha. Foi necessário coser uns aos outros cento e cinquenta colchões dos Lilipucianos para obter a largura e o comprimento do que seria o meu. Quanto à altura, quatro camadas dos mais cheios possível. Mesmo assim, a cama não me dava grande conforto. Era muito pouco fofa. Que remédio! Tive de contentar-me.
Durante esses dias de trabalho a meu favor, a Soberana Majestade reuniu várias vezes o Conselho de Ministros para resolver definitivamente o meu destino. Havia, pelo que mais tarde me revelaram, pânico, e receio de que eu viesse a quebrar os fios que me envolviam - (e que faria eu, depois? perguntavam, assustados) ou que faltasse comida para me alimentar, ou que, não faltando para mim, faltasse para os Lilipucianos, vítimas então da fome geral. Um dos Ministros chegou a propor que, nesse caso, me deixassem morrer à míngua de alimentos. Lembravam-se outros, porém, que a decomposição dum cadáver colossal como seria o meu, poderia trazer o risco de terrível e grande peste, não apenas na capital, mas em todo o reino. Valeu-me a lembrança da generosidade de que eu tinha usado para os jovens archeiros brincalhões. Decidiu-se então que uma Delegação Imperial percorresse o país e obrigasse os habitantes das aldeias mais próximas da capital a fornecer todas as manhãs seis bois (eram do tamanho de ratos, como já disse atrás) quatro carneiros, e outros víveres, além duma quantidade proporcional de pão e de vinho. Seiscentos funcionários foram nomeados para me servir, todos eles recebendo pingues ordenados. Habitavam tendas e barracas, de propósito construídas de cada um dos lados da porta da minha casa. Ao mesmo tempo, trezentos alfaiates foram encarregues de me talhar e coser um belo fato completo à moda do país. 0 mais importante, porém, foi a escolha de seis professores de nomeada, dos mais sábios do Império, que deveriam, em prazo breve, ensinar-me a falar e a escrever lilipuciano. Por fim, uma última decisão: - os cavalos do Imperador e da corte seriam trazidos muitas vezes ali, para se acostumarem a ver-me, e não tomarem o freio nos dentes ao chegar junto de mim, montados pelos respectivos donos. Todos estes decretos e ordens foram pontualmente e cabalmente executados. Logo que aprendi algumas palavras e frases da língua dos meus forcados hospedeiros, tratei de suplicar o Imperador que me desse a liberdade pela qual tanto ansiava. A resposta entristeceu-me, embora mais ou menos não esperasse outra: - Sua Majestade reclamava garantias do meu bom comportamento, antes de me mandar soltar. Garantias para ele e para o seu povo, que só o tempo lhe daria. Desde logo, porém, cumpria-me jurar, pela minha honra, que viveria em paz e em bom entendimento com todos quantos me rodeavam, promessa, que não me custou nada a fazer, pois a minha índole e o meu carácter não são de molde a criar conflitos. Nasci com bom feitio, sou amante da concórdia, e, não havia o menor motivo para modificar a natural doçura do meu temperamento.
Também me pediram licença para efectuar rigorosa busca nos meus bolsos, e em toda a minha pessoa, de modo a tirar-me as armas ou quaisquer objectos desconhecidos que tivesse trazido comigo. Nem protestei. Aceitei gostosamente a ideia, e procurei facilitar a tarefa aos dois funcionários que a realizaram. Agarrei neles com toda a minha delicadeza, e pu-los nos bolsos do meu casaco, e depois nos outros bolsos, cruzei os braços e fiquei muito quieto. Munidos de rolo de papel, de caneta e tinteiro, os Lilipucianos vasculharam as minhas algibeiras, só se atrapalhando quando se perdiam nos pequenos para eles grandes - rolos de cotão que nunca faltam nos bolsos dos fatos. Escreveram em seguida a lista dos objectos encontrados, cujo inventário mais tarde traduzi e aqui registo e copio:
"Primeiro, no bolso direito do gibão justo ao corpo do "homem-montanha" só encontramos um pedaço de tela grosseira, bastante grande para servir de tapete na sala de trono de Vossa Majestade. No bolso esquerdo, há um grande cofre de prata com tampa do mesmo metal e tão pesado que tivemos de pedir ao homem-montanha que o levantasse. 0 que ele fez de boa vontade. Entrámos dentro do cofre, mas, então, enterrámo-nos até aos joelhos num pó finíssimo, cor de castanha, que se espalhou na atmosfera e nos fez espirrar muitas vezes. Na algibeira do casaco de fora, encontrámos um enorme pacote de substâncias brancas e delgadinhas, dobradas umas sobre as outras, talvez da grossura de três homens, e marcadas por grandes desenhos negros que julgamos ser qualquer escrito, cujas letras atingem o tamanho de metade da palma da nossa mão.
Na algibeira esquerda do mesmo casaco, surgiu-nos uma espécie de máquina armada de vinte compridíssimos dentes, semelhante às palissadas que rodeiam e encerram o Palácio de Vossa Majestade, supondo nós que tal objecto o empregava o homem-montanha para se pentear. No imenso bolso do lado direito do seu "tapa-o-meio-do corpo" (os meus calções) vimos um pilar de ferro oco, ligado a um pedaço de madeira trabalhada; da banda do pilar, há outras pegas de ferro, em relevo, de forma muito esquisita. A tudo isto, o homem-montanha chamou a sua "pistola". Outro utensílio ou objecto igual encontrámos no bolso esquerdo. Num bolso pequeno - rodelas chatas de metal amarelo e branco, algumas tão pesadas que nos custou, a mim e ao meu camarada, a erguê-las para as contar. Pendente da algibeira que o homem-montanha chama "bolsinho" (!!!) do colete, uma corrente de prata, à qual estava presa uma máquina ainda mais maravilhosa de que a citada atrás. Parecia um globo achatado. Metade era prata, outra metade coberta de vidro. Por debaixo do vidro, lobrigámos figuras estranhas tragadas circularmente, mas em que nós não conseguimos tocar, por estarem defendidas pelo que imaginamos ser metal transparente. 0 homem-montanha encostou a tal máquina aos nossos ouvidos. Que barulho! Dir-se-ia um moinho movido a água. Pensamos que, ou é algum animal desconhecido e domesticado, ou então, a divindade que ele adora. Cremos que deverá ser uma divindade, porque ele nos asseverou nunca fazer a menor cousa sem a ter consultado. Apelidou-se de "oráculo", e afirmou que marcava o tempo pelo que media todas as acções da sua vida!
" Cumprimos, pois, desta maneira, as ordens de Vossa Majestade. Pesquisámos em todos os bolsos do homem-montanha e registámos tudo o que havia ali. Por fora do seu enorme corpo observámos um cinto feito da pele de qualquer animal fabuloso, do qual pendia uma espada do comprimento de oito dos vassalos de Vossa Majestade. Do outro, uma bolsa onde caberão seis homens. Continha globos dum metal muito pesado, mais ou menos do tamanho das nossas cabeças.
"Eis o inventário exacto das diversas cousas pertencentes ao homem-montanha, que, note-se, nos tratou e recebeu com a máxima civilidade e muito nos auxiliou.
"Assinado e selado no quarto dia da octogésima nona lua do feliz reinado de Vossa Majestade.
"Depois de ler o inventário, ordenou-me o Imperador que lhe entregasse todos os objectos que nele vinham mencionados. Obedeci-lhe sem demora. Separei a espada, com a bainha, do cinto, e atirei-a a um metro de distância. Em seguida, agarrei as pistolas, carreguei-as só de pólvora, preveni o Imperador que não se assustasse e dei dois tiros para o ar. A minha prevenção não foi inútil. A detonação surpreendeu de tal modo que os Lilipucianos que estavam perto e a própria Majestade caíram uns em cima dos outros, como se um raio os tivesse atingido. 0 Imperador, apesar de ser valente, só voltou a si passados alguns minutos.
Atrelaram uns poucos de cavalos a esses objectos e transportaram-nos a um edifício bastante afastado. 0 susto que o Imperador apanhara, incitara-o a ser prudente. Entreguei também o relógio. 0 ruído da máquina e o movimento rápido e incessante dos ponteiros, deslumbraram a corte. 0 Imperador desejava examinar de perto tão grande maravilha. Mandou-a levar ao palácio. Para transportar tamanho peso, dois dos guardas mais fortes enfiaram-lhe a argola num pau, e, cada um apoiando ao ombro as extremidades destes, lá foram com ele. Dei ainda o meu dinheiro, o meu pente, a minha tabaqueira de prata, o meu lenço e o caderno do meu diário. Sua Majestade quis saber para que servia tudo aquilo. Expliquei. Mandou que pusessem rótulos designativos e que os guardassem com o seu tesouro particular. Guardei apenas num bolso interior que não fora pesquisado, os meus óculos (sou fraco de vista), um pequeno telescópio, e outras ninharias que, receando que mas perdessem, preferi guardar.
Jonathan Swift, As Viagens de Gulliver, Livraria Sá da Costa