TIVE uma infância feliz, embora minha família não fosse de gente rica e houvesse cinco filhos em casa. Eu era o terceiro. Meu Pai mandou-me estudar para o Colégio Emanuel, em Cambridge, na idade dos catorze anos. Ali fiquei três anos, e fui aluno aplicado. Mas, como o encargo de pagar o Colégio se tornou excessivo para as posses de meu Pai, entrei como aprendiz no consultório do Dr. James Bates, cirurgião eminente de Londres. Quatro anos ali trabalhei. Depois, resolvido a ser médico de marinha, aprendi a arte da navegação, pois sempre pensei ser esse estudo o mais conveniente para o meu inato desejo de percorrer e conhecer o mundo. Realizei algumas travessias. Ainda voltei a praticar, porém, com o Dr. Bates. Ele morreu. No intervalo, tinha eu casado. Precisava ganhar a vida. Consultei minha mulher e resolvi fazer-me outra vez ao mar, na mesma qualidade de médico. Parti de Brístol em 4 de Maio de 1699, no navio veleiro «Antílope», comandado pelo Capitão Guilherme Richard. A travessia iniciou-se nas melhores condições. Tudo corria bem. Mas em seguida, começou a minha primeira e grande aventura.
Não entrarei em pormenores excessivos para não fatigar o leitor, agora que vou começar a narrativa de extraordinárias e imprevistas aventuras. Basta informá-lo de que, na viagem para as índias Orientais violentíssima tempestade impeliu o navio para noroeste da Terra de Van Diemen. Encontrámo-nos então, segundo o que observámos, na latitude de 30 graus e 2minutos. Doze dos nossos tripulantes, por excesso de trabalho e falta de alimento, tinham morrido. O resto ficou em péssimas condições. O barco bateu num rochedo e naufragou, por fim. Metemo-nos seis num bote, e remámos corajosamente umas três léguas, para alcançar terra. Não o conseguimos. O cansaço, a fome, e as ondas encarregaram-se da triste tarefa de levar os meus companheiros. Eu, remando e depois nadando, a tudo escapei, nem sei como. Alcancei com dificuldade imensa uma praia de suave declive. Mergulhado na água até aos joelhos andei então perto de duas léguas e cheguei à terra firme. Não vi ninguém, nem sinal sequer de qualquer habitação. Tudo deserto. Marginando a praia um campo de verde relva, apenas. Cansadíssimo, extenuado, deitei-me na relva macia e adormeci. A noite vinha descendo e eu não tinha energia para caminhar mais. Longas horas dormi, sossegadamente. Já o Sol estava alto quando acordei, e a sua claridade intensa quase me ofuscou a vista. Disse de mim para mim: - «Vou-me levantar e procurar de comer, à sombra da primeira árvore que me apareça». Era o melhor que podia fazer ... Simplesmente, ao tentar erguer-me, não o consegui. Estava preso pelos cabelos, que nesse tempo se usavam muito compridos, e o resto do corpo enredado num sem número de cordelinhos delgados, mas fortíssimos, que me tolhiam os movimentos. Pernas e braços, mãos e pés, senti-os fixados ao solo. Retesei os músculos, respirei fundo, quis sacudir aquelas apertadas malhas - e nada! Os cordéis entravam-me na pele e feriam-me. Que aflição! Por não me ser possível fazer outra cousa, voltei a estar quieto. Uma espécie de comichão ou prurido, como que provocado pela marcha de formiga ou de mosca, incomodou-me então. De súbito, surgiu a meus olhos espantados uma criaturinha minúscula, um homenzinho da altura aí duns cinco centímetros - imagine-se! - mas bem proporcionado e todo esperto. 0 uniforme e as armas que ostentava convenceram-me que se tratava de um militar, de um soldado ou, talvez, de um oficial. E mais havia, decerto, à minha volta, pois um ruído confuso, de passos e de exclamações, me chegava aos ouvidos. Assustei-me, confesso, e gritei involuntariamente. Mas a plena voz. Os sujeitinhos retiravam-se em pânico. E até alguns se feriram, caindo de cima do meu corpo, na precipitação da fuga. Como não me demorei a calar-me, voltaram, porém. Já eu conseguira libertar-me um pouco dos fios que me prendiam cabelos, cabeça, mãos e artelhos. Pude olhar um pouco para o lado. Ao dar por isto, as tais criaturinhas fugiram outra vez, soltando gritinhos de medo. Fugiram e emudeceram logo em seguida. Um deles exclamou, num brado de comando, "Tolgo fonac!" "Tolgo fonac!" - Que língua estranha, pensei. 0 pior é que mais de cem flechas - flechas que se diriam alfinetes ou agulhas - me pisavam uma das mãos, cujos dedos já se moviam, embora, vagarosa e dificilmente. Experimentei mexer-me mais. Nova descarga de flechas caiu. Algumas feriram-me o rosto. E os homens pequeninos atacavam-me então com agudas lanças. 0 que me valeu foi eu trazer o meu casaco de pele de búfalo, resistente a todos os golpes. Se não fosse essa circunstância, não escaparia às consequências do ataque. "Quieto! Quieto!" aconselhei-me a mim próprio. E quieto permaneci, esperando a noite. Confiava que, a favor da escuridão, e convencido de que não haveria ali habitantes de maior estatura, conseguiria libertar-me de vez das malhas da espécie de rede que me prendia. Iludia-me! Estava-me reservada outra sorte ... Os meus assaltantes não descansavam. As frechadas acabavam, o ataque cessou. Mas incessantes pancadas de martelinhos de pau - cujo barulho muito bem ouvia - avisavam-me da construção de qualquer cousa do lado do meu ouvido esquerdo. Assim era. Voltei ligeiramente a cabeça tanto quanto mo permitiam os cordéis que me seguravam os cabelos e a cabeça - e o que vi? Vi - surpreendidíssimo - que estavam a levantar um estrado aí de uns vinte centímetros, até à sua plataforma. Nem mais, nem menos. Queriam conversar comigo! Quatro dos homenzitos, de facto, um à frente, os outros como que formando séquito ou escolta, saltou para o meu peito e discursou. Pareceu-me eloquente, e que, nas suas palavras, havia ora ameaça ora bondade e compaixão. Abandonei-me à esperança da bondade possível. E não me arrependi, nem me arrependo ainda hoje. Respondi em meia dúzia, não de frases (que eles não entenderiam) mas de sinais. E, como a fome apertava, busquei que esses sinais revelassem a minha submissão e a minha urgente necessidade de alimentos. 0 comandante da escolta, o "Hurgo", - que era o nome que lhe davam - compreendeu-me muito bem. Desceu sem demora do frágil estrado e ordenou que trouxessem muitas escadas de mão. Colocaram-nas aos meus lados, contra o meu corpo. Cem criaturinhas diligentes e curiosas caminharam para a minha boca. Transportavam cestos de carne muito bem preparada de diferentes animais. (Mas que animais? Não adivinhei quais fossem). Eram pernas, e outras partes do corpo desses bichos. Qualquer delas, todavia, não excedia o tamanho de asas de cotovia. De uma só vez, engoli bastantes de tais iguarias, acompanhando-as de seis pães! Os meus ofertantes ficavam maravilhados ... Sentia sede, também, Lá me fiz entender por novos sinais. Abriram alguns tonéis de vinho e despejavam-nos na boca. Cada um não seria maior do que um copito dos nossos. Bebi avidamente. Pedi mais. À forca de gesticulação vária explicavam-me que não havia. Paciência! Já estava um pouquito mais reconfortado. Reconfortava-me também a ideia de que não tinha abordado em terra de selvagens ou de gente má. Enquanto eu comia, esfregavam-me a cara e as mãos com um certo unguento, de cheiro muito agradável e rapidamente curativo das alfinetadas - alfinetadas para mim, para eles terríveis frechadas - que eu recebera. Decerto a minha fisionomia denunciou naquele momento satisfação patente. Os homenzitos gostaram de me ver assim, e a minha alegria comunicou-se-lhes. Começaram a dançar sobre o meu peito - quase nem me pesavam! . . . - repetindo volta e meia "Hekinah degul", palavras de que mais tarde soube o sentido e que exprimiam, claro está, agrado e contentamento. Indicaram-me então que deitasse fora os dois tonéis despejados. Impeli-os. Rolaram e caíram. Afastados da passagem, - aos gritos de "Borach Mivola" - para não serem feridos, mal os avistaram no chão atiravam ao ar um "hurrah!" de entusiasmo, bradando de modo "Hekinah Degul".Vi então chegar junto de mim, mais exactamente em cima de mim, uma multidão imensa daqueles pequenos e nojentos seres. Compunha-se de um verdadeiro exército, com seus generais, coronéis e capitães, de membros do clero, da magistratura e da nobreza, de burgueses, de operários, de artífices, e mesmo de camponeses. Distinguia-se cada classe pelos trajos. Se eu quisesse, fácil me seria deitar a mão a um ou mais desses visitantes, que me contemplavam espantadíssimos. Nem o tentei. Sentia-me agradecido pela bondade com que fora tratado e não tinha em consciência o direito de lhes dar a mais leve beliscadura. Antes pelo contrário, se atendesse unicamente ao meu problema alimentar ... 0 que eu sentia, porém, era grandíssima vontade e até necessidade de dormir. Adormeci pesadamente, nem sequer me impedindo de repousar os passinhos miúdos dos estranhos transeuntes que formigavam sobre o meu corpo. Quando acordei, continuava envolto na rede de cordelinhos em que me tinham, por assim dizer, embrulhado. Ao que mais tarde vim a saber, o Imperador daquele país, que se chamava o país de Lilipucia, fora informado da minha chegada, por um guarda da praia, mal eu a alcançara, e mandara que se construísse um imenso carro para me transportarem, sempre amarrado, até à Capital do seu Império. Lá estava o carro, com efeito. Tinha um metro e oitenta centímetros de comprimento, vinte rodas, e mil e quinhentos cavalos vigorosos, aí do tamanho de ratos grandes, puxavam-no com ímpeto. 0 pior foi içar-me para tal veículo. Só à força de cordas e de roldanas. Um trabalhão! Novecentos homenzitos, Lilipucianos valentes, gritando várias vezes Hekinah degul, e obedecendo ao Comandante Hurgo, que lhes recomendava "cuidado! cuidado!", na sua linguagem, ergueram-me do solo e atiraram-me para cima do carro. Ali, amarraram-me solidamente, e toca para a cidade que não estava muito longe do que um simples quilómetro. Mas esse quilómetro levou mais de um dia a percorrer. Durante esse tempo, dormi outra vez. Tinham-me dado um soporífero.De súbito, acordei, espirrando estrondosamente. 0 capitão dos meus guardas lembrou-se de enterrar a espadinha na minha narina esquerda. Foram tais as cócegas que logo despertei. Não adormeci mais.Este foi o único incidente do caminho. No dia seguinte, de manhã, paramos à distância de cinquenta metros da capital de Lilipucia.Nesse lugar, existia um templo, que fora profanado em épocas idas, e no qual, portanto, não se praticava o culto. Seria essa a minha moradia. Para os naturais da terra era muito vasta, sem dúvida. Para mim, bastava, em comprimento. Quanto à altura, não ia além da dum vulgar canil! Em frente, erguia-se uma torre da mesma altura, onde se instalaria o Imperador e a sua corte para me contemplarem de perto e sem perigo.Tiraram-me então do carro, sem me desamarrarem, já se vê, e meteram-me dentro do antigo templo. Vieram depois os serralheiros de Sua Majestade e fixaram à porta oitenta e uma correntes de aço, não mais grossas do que fortes cadeias dos nossos relógios de bolso. Essas cadeias, seguras na porta, foram aferrolhadas à minha perna esquerda com trinta e seis cadeados. Então, depois de verificarem, que me seria impossível quebrar tão sólidas cadeias, os operários cortaram todas as cordazitas que me prendiam ainda.Pude erguer-me e mover-me melhor. Mas que tristeza, que profunda mágoa! Sentia-me cão no canil, acorrentado, privado de verdadeira liberdade!Cada vez mais, para me admirar, a multidão engrossava, aumentava despropositadamente. Gulliver transformado em espectáculo, que vexame para mim. E se se lembrassem de me atacar? Mas - não. 0 Imperador proibira, sob pena de morte, que me tocassem, e o povo tinha de contentar-se com contemplar-me. Aborrecido e cansado, deitei-me ao comprido no nicho, e busquei repousar de tanta comoção já sofrida.
Adaptação Livre da Obra de Jonathan Swift por JOÃO DE BARROS, As viagens de Gulliver, Livraria Sá da Costa
segunda-feira, 9 de junho de 2008
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