quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

O Meio Galo

A galinha pedrês da Senhora Inês tinha doze ovos para chocar.
O gato maltês da Senhora Inês tinha doze ovos para cobiçar.
Enquanto a Senhora Inês punha o milho na tigela, enquanto saía do ninho a galinha pedrês, veio o gato maltês e cravou a garra no ovo mais graúdo. Espetou as unhas, fincou os dentes, mas o ovo não havia maneira de partir. Então, por um buraquinho, pôs-se o gato a chupar, suga que suga, como quem bebe por uma palhinha, mas... zás, catrapás!


Deu-lhe a galinha bicada
Deu-lhe a senhora pancada
E ele escapou-se a miar.


Três semanas se deitou a galinha sobre os ovos. Ao cabo do tempo marcado, começaram os pintainhos a sair, redondos, amarelos - piu, piu, piu -, à roda da galinha pedrês.
Só um ovo faltava. Também esse, por fim, estalou e dele surgiu, pulando - sabem o quê? -, um meio pinto. Tinha meio corpo, uma só asa, uma só pata.
Pinto tão estranho nunca se vira nas redondezas. Vinha gente de quintas distantes para o conhecer. Desciam os pássaros das árvores para o verem melhor e até a vaca, a caminho do pasto, parava, mugindo, diante do fenómeno. O gato maltês ficava a ouvir as conversas, num ar de troça por bichos e homens, resmungando para com os seus bigodes: "Pena foi eu ter comido apenas metade... Inteirinho é que ele me tinha apetecido."
O meio pinto cresceu, fez-se meio frango, meio galo e, em breve, a sua meia voz de cana rachada acordava todos de madrugada. Tão guloso, vaidoso, pomposo que não lhe cabia a fama nas dez léguas em redor. Levantou a crista, empertigou o pescoço, gritando para quem o quis ouvir:
- Vou para o palácio real, pois sou o rei dos galináceos.
Saltando ao pé-coxinho se foi afastando, até que encontrou um regato parado, com o leito atulhado de troncos e folhagem.
- Vem cá! - pediu o regato. - Liberta-me, para eu poder continuar a correr!
- Tenho pressa, sou o rei
A ninguém ajudarei!
Ia o Sol a pique no céu quando ouviu o manso crepitar de uma fogueira:
- Estou em cinzas. Abana-me com a tua asa, que não me quero apagar!
- Tenho pressa, sou o rei
A ninguém ajudarei!
E, perna para que te quero, pôs-se a marchar. Ao cair da noite, sentiu um fraco gemido:
- Sou o vento que se enredou num silvado. Afasta com o teu bico as folhas para que eu possa soprar!
- Tenho pressa, sou o rei
A ninguém ajudarei!
Assim continuou seu caminho até ao palácio real.
Entrou pela primeira porta que encontrou aberta e pôs-se a cantar:


- Sou rei, sou rei, sou rei
Aqui me instalarei!
Sou rei, sou rei, sou rei
Aqui me instalarei!


Mas, por pouca sorte, metera-se na cozinha. O cozinheiro deitou-lhe a mão, pondo fim à cantoria.
- Se és rei, já vais reinar!
Atirou-o para uma panela pousada sobre o fogão.
- Salva-me, água! - piou o meio galo.
- Não me quiseste ajudar,
Agora vou-te afogar! - disse a água e cobriu-o.
Logo o fogo começou a saltar de um lado e outro, em labaredas…
- Salva-me, fogo! - piou o meio galo.
- Não me quiseste ajudar,

Agora vou-te queimar!
E assim foi.

Numa travessa de prata o levou o cozinheiro à mesa real.
- Que é isto? Meio galo? E, ainda por cima, todo estorricado!
Agarrando-o pela asa, o rei atirou-o pela janela fora.
- Salva-me, vento! - piou mais uma vez o meio galo.
- Não me quiseste salvar,
Agora vou-te empurrar!
E tanto, tanto soprou, com tal fúria de vingança, que o meio galo à torre mais alta foi parar. Agarrou-se com força, com a sua única pata, mas mesmo assim o vento o faz rodopiar.
Talvez esteja bem perto de onde tu moras. Não viste, por acaso, no cimo daquela torre, virando-se a mando do vento, um meio galo? Chamam-lhe o cata-vento: olhando para ele se sabe em que direcção sopra o vento.

Luísa Ducla Soares, O Meio Galo, Edições ASA


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