O Santo sofreou o cavalo, acalentou com enternecida caridade a mão desse abandonado e, em seguida, desembuçando-se, tomou da espada, cortou ao meio a sua capa de agasalho, deu metade dela a esse miserável peregrino e, envolto na outra metade, sacudiu a rédea e prosseguiu através da tormenta, de peito ao vento e à neve,
Subitamente, porém, no caminho do soldado, a tempestade desfez-se, amainou o tufão e a geada, o céu descobriu instantaneamente, como por encanto, a sua inefável profundidade límpida e azul, e um sol de Estio acariciante e resplandecente inundou a terra de alegria e vestiu de luz e calor, numa apoteose da natureza, esse cavaleiro de caridade evangélica.
Deus, reconhecido, para que não se apagasse da memória dos homens a notícia deste acto de bondade, praticado por um dos seus eleitos, dispôs que em cada ano, na mesma época em que São Martinho se desapossou da metade da sua capa, por alguns dias de gala se interrompesse o Inverno, cessasse o frio, sorrisse o céu e a terra de um miraculoso contentamento.
Ramalho Ortigão, Verão de São Martinho
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