Do outro, via-se um ramo de espinheiro, onde um ninho de cotovia espreitava. Dentro do ninho, um ovo. Branco, pequenino, redondo, assinalando a esperança que em cada Natal renasce, a vida que se renova quer acreditemos ou não nos deuses, quer aceitemos ou não que todos os anos há uma criança que espera nascer no coração cansado do mundo.
Às vezes, com os nossos olhos primeiros, o nosso sorriso antigo e à tona; às vezes, com o rosto de Emanuel, o da Galileia. Apenas.
Tanto faz, porque ele nasce na mesma, quer o aceitemos no espaço macio dos nossos sonhos, quer lhe fechemos as portas e o deixemos lá fora, ao relento da indiferença e do cepticismo mais duro.
Mas ali, na montra, entre um tronco velho e o ninho frágil, quem dormia era uma criança amassada em barro de Estremoz, alongada, não em palhinhas no meio de animais ingénuos como conta a tradição, mas, num banco de jardim.
Assim, talvez por casualidade, pelo olhar sensível da artista que montara aquele presépio tão original, ela resumia violentamente a história de todas as crianças sem lar, sem árvores, crescendo, sem datas para assinalar, sem milagres que lhe adocem os dias ou os projectos.
Ao relento, num banco de jardim, dorme uma criança que não vai ter Natal.
Tem as mãos frias e abertas.
Cresce, emergindo da flor do espinheiro e olhando a doçura do ninho, que sempre lhe estará interdita. É tão legível o que descubro nos símbolos que me detenho, comovida.
A legibilidade dos dias é, afinal, acessível. Basta estar atento. Basta descobrir e percorrer, com disponibilidade, o outro lado das cabalas.
Embrulhada na tarde e no vento, penso que a dona da livraria, sempre tão discreta, quase silenciosa, que comunica com os clientes com um sorriso triste mais do que com palavras, escreveu um poema sem preço, nos deu uma prenda linda sem papel de embrulho nem fita de enfeite, pelo qual nunca lhe pagarão direitos de autor.
Só espero que, porque é Natal, e nestes dias o impossível pode acontecer, do ovo nasça uma ave branca. E que a ave fique esvoaçando na livraria, interrompa os olhos distraídos de quem passa, obrigando-os a entrar.
Para comprar muitos, muitos livros.
Para folhearem os postais e descobrirem as ínfimas coisas belas que há na livraria do meu bairro.
Para ouvirem a música boa que lá está, sempre presente.
Para sorrirem e se aquecerem por dentro, porque a vida é fria, a rua é árida e a fraternidade é uma palavra velha que se deve acender, sobretudo agora, no Natal.
Maria Rosa Colaço, Não quero ser grande, Lisboa, Ed. Escritor, 1996
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