Então a menina saiu da água, subiu para uma rocha e principiou a dançar. E a água junto dos seus pés ia e vinha e bailava também.
Escondido, atrás do rochedo, o rapaz, imóvel e, calado, olhava.
Quando a cantiga e a dança acabaram, o polvo pegou na menina e com os seus oito braços muito escuros pôs-se a embalá-la.
- Vem aí a maré alta, são horas de nos irmos embora - disse o caranguejo.
- Vamos - disse o polvo.
Chamaram o peixe e puseram-se os quatro a caminho. O peixe ia à frente a nadar com a menina ao lado, depois vinha o polvo e no fim o caranguejo, sempre com um ar muito desconfiado e furioso.
Foram indo por entre as areias e as rochas, até que chegaram a uma grata para onde entraram os quatro. O rapaz quis ir atrás deles, mas a entrada da gruta era muito pequena e ele não cabia. E como a maré estava a subir, teve que se ir embora, pois se ali ficasse morria afogado.
Foi para casa muito espantado com o que tinha visto e durante esse dia não pensou noutra coisa. Na manhã seguinte mal acordou foi a correr para a praia.
Foi pelo caminho da véspera, tornou a esconder-se atrás das duas pedras, espreitou e ouviu as mesmas gargalhadas da véspera. A menina, o caranguejo, o polvo e o peixe estavam a fazer uma roda dentro de água. Estavam divertidíssimos.
O rapaz, louco de curiosidade, não conseguiu ficar quieto mais tempo. Deu um salto e agarrou a menina.
- Ai, ai, ai! Que desgraça!-Gritava ela.
O polvo, o caranguejo e o peixe tinham desaparecido, aterrorizados, num abrir e fechar de olhos.
Ó polvo, ó caranguejo, ó peixe, acudam-me, salvem-me – gritava a Menina do mar.
Então o polvo, o caranguejo e o peixe, apesar de estarem cheios de medo, saíram detrás das algas onde se tinham escondido, e começaram a tentar salvar a Menina. Faziam o que podiam: o polvo trepava pelas pernas do rapaz, o caranguejo com as suas tenazes belisca-lhe os pés, o peixe mordia-lhe nas canelas. Mas o rapaz era maior e tinha mais força, deu-lhes alguns pontapés e fugiu para longe com a Menina do mar que continuava a chamar:
- Ó polvo, ó caranguejo, ó peixe!
- Não grites, não chores, não te assustes – dizia o rapaz. Eu não te faço mal nenhum.
- Eu sei que me vais fazer mal.
- Que mal é que eu hei-de fazer a uma menina tão pequenina e tão bonita?
- Vais-me fritar - disse a Menina do mar. E pôs-se outra vez a chorar e a gritar:
- Ó polvo, ó caranguejo, ó peixe!
- Eu fritar-te! Para quê? Que ideia tão esquisita! - disse o rapaz espantadíssimo.
Os peixes dizem que os homens fritam tudo quanto apanham.
O rapaz pôs-se a rir e disse:
- Isso são os pescadores. Os pescadores é que apanham os peixes para os fritar. Mas eu não sou pescador e tu não és um peixe. Não te quero fritar nem te quero fazer mal nenhum. Só te quero ver bem, porque nunca na minha vida vi uma menina tão pequeno e tão bonita. E quero que me contes quem tu és, como é que vives, o que e que fazes aqui no mar e como é que te chamas.
Então ela parou de gritar, limpou as lágrimas, penteou e alisou os cabelos com os dedos das mãos a fazerem de pente, e disse:
- Vamos sentar-nos os dois naquele rochedo e eu conto-te tudo.
- Prometes que não foges?
- Prometo.
Sentaram-se os dois um em frente do outro e a menina contou:
- Eu sou uma menina do mar. Chamo-me Menina do Mar e não tenho outro nome. Não sei onde nasci. Um dia uma gaivota trouxe-me no bico para esta praia. Pôs-me numa rocha na maré vaza e o polvo, o caranguejo e o peixe tomaram conta de mim. Vivemos os quatro numa gruta muito bonita. O polvo arruma a casa, alisa a areia, vai buscar a comida. É de nós todos o que trabalha mais, porque tem muitos braços. O caranguejo é o cozinheiro. Faz caldo verde com limos, sorvetes de espuma, e salada de algas, sopa de tartaruga, caviar e muitas outras receitas. É um grande cozinheiro. Quando a comida está pronta o polvo põe a mesa. A toalha é uma alga branca e os pratos são conchas. Depois, à noite, o polvo faz a minha cama com algas muito verdes e muito macias. Mas a costureira dos meus vestidos é o caranguejo. E é também o meu ourives: ele é que faz os meus colares de búzios, de corais e de pérolas. O peixe não faz nada porque não tem mãos, nem braços com ventosas como o polvo, nem braços com tenazes como o caranguejo. Só tem barbatanas e as barbatanas servem só para nadar. Mas é o meu melhor amigo. Como não tem braços nunca me põe de castigo. É com ele que eu brinco. Quando a maré está vazia brincamos nas rochas, quando está maré alta damos passeios no fundo do mar. Tu nunca foste
ao fundo do mar e não sabes como lá tudo é bonito. Há florestas de algas, jardins de anémonas, prados de conchas. Há cavalos marinhos suspensos água com um ar espantado, como pontos de interrogação. Há flores que parecem animais e animais que parecem flores. Há grutas misteriosas, azuis-escuras, roxas, verdes e há planícies sem fim de areia branca, lisa. Tu és da terra e se fosses ao fundo do mar morrias afogado. Mas eu sou uma menina do mar. Posso respirar dentro da água como os peixes e posso respirar fora da água como os homens. E posso passear pelo mar todo e fazer tudo quanto eu quero e ninguém me faz mal porque eu sou a bailarina da Grande Raia. E a Grande Raia é a dona destes mares. É enorme, tão grande que é capaz de engolir um barco com dez homens dentro. Tem cara de má e come homens e peixes e está sempre com fome. A mim não me come porque diz que eu sou pequena de mais e não sirvo para comer, só sirvo para dançar. E a Raia gosta muito de me ver dançar. Quando ela dá uma festa convida os tubarões e as baleias e sentam-se todos no fundo do mar e eu danço em frente deles até de madrugada. E quando a Raia está triste ou mal disposta eu também tenho que dançar para a distrair. Por isso sou a bailarina do mar e faço tudo quanto eu quero e todos gostam de mim. Mas eu não gosto nada da Raia e tenho medo dela. Ela detesta os homens e também não gosta dos peixes. Até as baleias têm medo dela. Mas eu posso andar à vontade no mar e ninguém me come e ninguém me faz mal porque eu sou a bailarina da Raia. E agora que já contei a minha história leva-me outra vez para o pé dos meus amigos que devem estar aflitíssimos.
O rapaz pegou na Menina do Mar com muito cuidado na palma da mão e levou- a outra vez para o sítio de onde a tinha trazido.
Sophia de Mello Breyner Andresen, A Menina do Mar, Figueirinhas
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