quinta-feira, 18 de outubro de 2007

O Ardina

Era Domingo de Inverno e àquela hora matinal ninguém. As ruas vazias, silenciosas, atravancadas de carros de vidros embaciados. Todos dormiam ainda à hora da leiteira. Portas fechadas, persianas corridas.
Um cão vadio rebuscava os restos de lixo e os gatos espreitavam, atentos ao inimigo, escondidos debaixo dos automóveis. O bairro económico descansava ao sétimo dia, no quente dos lençóis.
Foi então que apareceu, na esquina, aquele homem de boné, capa de plástico e sacola enorme pendurada no ombro. Apregoava jornais com uma cantilena intermitente, perfurando o silêncio como uma verruma.
Atirava títulos de jornais, com a perícia de malabarista de circo. Levava a mão à sacola, tirava um exemplar, dobrava-o em laço e atirava-o, depois, para as varandas. O jornal descrevia uma curva suave e caía com um leve ruído, no destino certo.
Lá dentro, naquela manhã de Domingo sem sol, as pessoas dormiam o melhor sono da semana, prolongado e tranquilo. E aquele homem, como quem a malha no terreiro ou lança argolas em barras de feira, atirava-lhes sobressaltos, guerras, desastres, mortes, sismos, tiros, prisões, divórcios, roubos, discursos, artigos e preposições.
Mal sabiam o que os esperava, aqueles cidadãos do bairro económico tranquilo, vazio, cor-de-rosa, quando deixassem de ressonar naquela manhã domingueira, com ameaços de chuva.
Mas o homem dos jornais, na rotina do seu trabalho matinal, não lançava só bombas de notícias, granadas de desgraças. Atirava também esperanças que florirão nas varandas, na manhã clara de um Domingo de sol.

Manuel de Azevedo
O homem da cidade

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